quinta-feira, maio 01, 2008

O ceticismo da Super II

No artigo "O ceticismo da Super", fiz alguns comentários sobre a matéria de capa da edição de dezembro da revista Superinteressante (para ler o texto, clique aqui). Mas creio que vale a pela acrescentar algumas observações mais aprofundadas sobre certos detalhes da reportagem de Rodrigo Cavalcante. Após as citações extraídas da matéria, vêm os comentários em caracteres itálicos:

"Cabe, então, à ciência provar a existência de Deus? O paleontólogo americano Stephen Jay Gould acredita que nenhuma teoria (nem mesmo a da evolução) pode ser vista como uma ameaça às crenças religiosas, 'porque essas duas grandes ferramentas da compreensão humana trabalham de forma complementar, e não oposta: a ciência para explicar os fenômenos naturais e a religião como pilar dos valores éticos e da busca por um sentido espiritual para a vida'. É por pensar assim que ele sempre se colocou do lado dos pesquisadores que são contra misturar ciência com religião."

O NOMA (non-overlapping magisteria) ou MNI (magistério não interferente) de Gould, é uma fórmula pacificadora que, aparentemente, respeita a integridade de cada esfera e estabelece as condições para um diálogo civilizado e respeitoso. Johnson propôs um "mandamento": Não misturarás os magistérios vestindo a filosofia naturalista como se fosse ciência, e aprenderás a conduzir a busca imparcial de fatos independentes de qualquer dogmatismo filosófico (Ciência, fé e intolerância, pág. 114).

"Ainda assim, muita gente não aceitou a idéia de que as espécies vivas, incluindo a nossa, possam ter se desenvolvido graças apenas à seleção natural, tendo evoluído quase por acaso em meio a tantas outras espécies."

O "muita gente não aceitou" Cavalcante omite, mas incluiu parte de cientistas de peso da época de Darwin. Devido a essa rejeição científica, Darwin se viu obrigado a escrever quatro capítulos no Origem das Espécies (30% da obra!) tentando refutar essas objeções científicas e seculares. Darwin não refutou, nem seus seguidores refutaram essas objeções até hoje.

"Do ponto de vista da física pura, porém, é importante ressaltar que todo esse papo de criação do Universo tem pouca (ou nenhuma) importância. Não fosse pela descoberta da teoria do big-bang (segundo a qual ele surgiu após uma grande explosão), nem sequer haveria a necessidade de provar que houve uma "hora zero", afinal o tempo e o espaço são mesmo relativos, não é mesmo?"

Cavalcante talvez nem saiba, mas a teoria do big-bang (massa, energia, tempo e espaço) por ter implicações teológicas (creatio ex-nihilo) foi "engavetada" pela comunidade científica por três décadas. Vide Uma Breve História do Tempo, de Stephen Hawking, um autor insuspeito.

"'De qualquer maneira, essa tese é mais um desejo de encontrar uma ordem do que algo validado cientificamente', diz o físico Marcelo Gleiser."

Só que Gleiser e os demais cientistas não sabem dizer o que havia antes do número de Planck!

"Tudo mudou no dia 18 de outubro deste ano, quando teve início o julgamento sobre a grade curricular de uma escola pública local que decidiu dedicar parte das aulas de biologia ao estudo de uma teoria conhecida em inglês como intelligent design (algo como projeto ou desenho inteligente, numa tradução livre para o português)."

Falso. Cavalcante sequer cuidou de pesquisar sobre o caso de Dover. A iniciativa daquele conselho de educação foi a de ler uma declaração para os alunos (muito diferente de ensinar a teoria do design inteligente) afirmando que a teoria de Darwin não é um fato e sobre a existência de uma teoria alternativa à de Darwin – Design Inteligente.

"Nas salas de aula em questão, as crianças e jovens aprendem que várias tarefas altamente especializadas e complexas do organismo humano - como a visão, o transporte celular e a coagulação, entre outras - só podem ser explicadas pela ação de uma força maior ou, em outras palavras, pela intervenção de um ser superior, capaz de bolar o tal desenho inteligente do nosso corpo e da nossa mente."

Falso, de novo. Cavalcante está mal informado e mal intencionado, pois a teoria do design inteligente não é ensinada em nenhuma escola pública americana, muito menos em Dover, onde somente uma declaração seria lida aos alunos a respeito da existência de uma teoria alternativa à teoria de Darwin.

"Se, como já foi dito no início do texto, há muitos cientistas que não vêem motivos para buscar as impressões digitais de Deus na história do Universo, outros tantos acreditam que as teses de Darwin têm falhas e, como tal, precisam ser ensinadas nas escolas 'em toda sua amplitude', ou seja, alertando os alunos para o fato de que há controvérsias a respeito das descobertas que o jovem naturalista inglês fez a bordo do navio Beagle."

Se existe controvérsia nas publicações científicas sobre o "como" da evolução entre os especialistas, por que os alunos do ensino médio não podem tomar conhecimento dessa insuficiência epistêmica. Desde os anos 1960 o neodarwinismo não é mais considerado uma sólida teoria apoiada pelas evidências encontradas na natureza. Os cientistas sabem disso e não querem que os alunos e leitores não-especializados também saibam. O nome disso não é educação, mas sim doutrinação.

"Os defensores do desenho inteligente juram que não têm nenhuma ligação com os criacionistas do século 19, que difundiam uma interpretação literal do Gênese para conter a rápida e eficaz disseminação das teorias darwinistas - apesar das críticas da maior parte dos colegas da comunidade científica."

A idéia de design é muito antiga. Os antigos filósofos começaram a a formular argumentos sobre o design muito antes de terem sido expostos à Bíblia, e na verdade sem basearem seus argumentos em quaisquer textos sagrados. O filósofo grego Heráclito, Empêdocles, Demócrito e Anaximandro aceditavam que a vida podia se originar sem qualquer direção inteligente (como Darwin), enquanto que Sócrates, Platão e Aristóteles advogavam a necessidade de uma mente. Durante o período romano, Cícero mencionou a operação ordenada das estrelas bem como das adaptações biológicas nos animais como uma evidência empírica de que a natureza era o produto de "design racional".

"Em 1925, teve início um julgamento que, num primeiro momento, levou à condenação de um professor do ensino médio do Tennessee simplesmente porque ele acreditava que somos parentes dos macacos (e dizia isso em classe)."

Falso, mais uma vez. Scopes nem professor de Biologia era e nem se lembrava se havia ensinado evolução em sala de aula. Um bom livro sobre o caso Scopes é Summer for the Gods, de Edward Larson. Scopes foi mais liberal do que a ACLU, pois advogava o ensino das duas visões.

"Será que, do ponto de vista científico, o desenho inteligente tem consistência? 'Por enquanto, não', afirma Vera Volferini, professora de genética e evolução da Unicamp. Segundo a bióloga, não existem ainda argumentos científicos que sejam tranqüilamente aceitos pela maioria dos pesquisadores."

Tem, sim. A complexidade irredutível dos sistemas biológicos (Behe) e a informação complexa especificada (Dembski) são questões científicas consistentes em biologia e matemática. Aqui no Brasil nenhum centro de lógica de universidades públicas ou privadas lidou com a tese de Dembski. Por quê?

"'Teorias como essa presumem que o ser humano é o resultado de um projeto perfeito, o que não é verdade. É consenso entre os especialistas que o design humano, apesar de eficiente, está longe de ser inatacável biologicamente. A próstata do homem, para ficar em apenas um exemplo, não segue um desenho anatômico ideal', diz ela."

Volferini desconhece, mas o "design otimizado" não é condição sine qua non para a suficiência epistêmica da teoria do design inteligente. Henry Petroski, engenheiro e historiador da Universidade Duke, destacou habilmente no livro Invention by Design: "Todo o design envolve objetivos conflitantes e daí o meio-termo, e os melhores designs serão sempre aqueles que vêm com a melhor solução conciliadora" (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1996, pág. 30).

"E é justamente essa falha na concepção que provoca muitos problemas que afetam boa parte dos machos da espécie. Além disso, por que não poderíamos ter mais de 5 dedos em cada mão? Vera explica que, ao menos do ponto de vista biológico, temos esse número de dedos não porque seria um problema ter um ou dois a mais, mas porque fazemos parte de uma espécie cujo ancestral, há milhões de anos, tinha (por acaso) 5 dedos."

Volferini, professora de genética e evolução da Unicamp, deveria saber que a homologia não estabelece a tese da ancestralidade comum e que há muitos problemas nessa área. Na sua monografia antiga Homology, an Unresolved Problem (Oxford University Press, Londres, 1971), Sir Gavin de Beer discutiu o fracasso de se encontrar uma base genética e embriológica para a homologia: "As estruturas homólogas não precisam ser controladas por genes idênticos e a homologia do fenótipo não implica em semelhança de genótipo" (pág. 15).

"'O problema não é ter ou não uma crença pessoal', diz Marcelo Menossi, professor de genética molecular da Unicamp. 'O problema é tentar justificar e espalhar essa crença usando falsos argumentos científicos.'"

Menossi, como professor de genética molecular de renomada deveria saber mais sobre a tese científica de Behe. Se Menossi ou qualquer cientista falsear a complexidade irredutível de Behe através de processos evolutivos graduais, aí sim a Teoria do Design Inteligente estaria usando de "falsos argumentos científicos". Interessante que Menossi não se preocupa que os alunos do ensino médio não fiquem sabendo sobre a insuficiência epistêmica da atual teoria geral da evolução, que é discutida intramuros e nas publicações científicas especializadas.

"Numa de suas numerosas observações, descobriu que os macacos agiam de maneira nada usual diante de uma cachoeira, demonstrando o que ela batizou de senso místico e de reverência. 'Alguns permaneciam sentados numa rocha em frente à queda d'água, como se estivessem encantados. Outros ficavam sob a queda d'água por mais de 50 minutos, quando normalmente nem gostavam de se molhar.' Goodall concluiu que esse comportamento é um traço de religiosidade primitiva."

Isso não é scientia qua scientia, mas especulação de uma cientista querendo estabelecer a sua hipótese.

"O dilema humano é que evoluímos geneticamente para acreditar em Deus, não para acreditar na biologia."

Onde foi então que a evolução errou?

"A ciência ainda não conseguiu explicar se Deus criou o nosso cérebro com essa habilidade ou se foi a evolução que fez o cérebro criar esse portal para Deus."

A scientia qua scientia é uma questão de empirica empirice tratanda – as coisas empíricas são empiricamente consideradas. Isso é especulação filosófica.

"Para muitos pesquisadores, o que distingue a ciência de outras visões de mundo é exatamente sua recusa em aceitar cegamente qualquer informação e sua determinação de submeter qualquer tese a testes constantes até que novos dados possam confirmá-la ou refutá-la."

Esta é uma definição de ciência muito estrita e parcialmente verdadeira, pois muitos cientistas aceitam obstinada e cegamente vários aspectos teóricos que ainda não foram apoiados pelas evidências empíricas – p. ex.: ancestral comum, a origem e evolução das espécies são aceitas a priori.

"Essa visão baseia-se, entre outras coisas, na obra do filósofo vienense Karl Popper, que morreu em 1994. Segundo Popper, a ciência só pode tratar de temas que resistam ao que ele chamou de 'critério de falseabilidade'. Resumidamente, o papel do verdadeiro cientista é buscar, com persistência, erros em sua teoria - em vez de tentar achar dados que provem sua correção. Quanto mais genérica e exposta a falhas (ou seja, quanto mais 'falseável'), menos provável ela é. Por outro lado, quanto mais resistente (menos falseável), maiores as chances de acerto, pelo menos até o próximo teste."

Darwin seria reprovado pelo critério popperiano de falseabilidade.

"'Como o homem é o único ser capaz de amar, tem uma imensa dificuldade em aceitar que o Universo pode ser totalmente indiferente a ele', afirma."

O ser humano também é capaz de odiar, isso facilitaria aceitar a indiferença (sic – antropomorfismo) do Universo? Isso não é scientia qua scientia, mas uma declaração filosófica naturalista mascarada de ciência.

"Em meados do século 20, o francês Jean Paul Sartre, o pai do existencialismo - segundo o qual de nada adianta buscar um propósito da existência para além da vida humana -, disse que a nossa própria condição de seres que vivem em sociedade é suficiente para justificar a prática de valores solidários."

Algumas semanas antes de morrer (1980), Sartre declarou: "Eu não sinto que eu seja o produto do acaso, um grão de poeira no Universo, mas alguém que era esperado, preparado, prefigurado. Resumindo, um ser que somente um Criador poderia colocar aqui, e esta idéia de uma mão criadora refere-se a Deus." Simone de Beauvoir, amante de Sartre, replicou criticamente: "Como alguém poderia explicar este ato senil de um vira-casaca." Ela continuou: "Todos os meus amigos, todos os sartrianos e a equipe editorial do Les Temps Moderns me apoiaram nesta consternação." – Diálogo com um marxista publicado no Nouvelle Observateur, relatado por Thomas Molnor in National Review de 11 de junho de 1982, pág. 677.

"'A fé não se traduziu apenas em atos de paz e harmonia ao longo dos tempos', lembra Giacoia. 'Dos grandes conflitos religiosos do passado ao moderno terrorismo fundamentalista, já foram cometidas inúmeras atrocidades em nome da ética religiosa em todo o mundo.'"

A ilação de Giacoia é academicamente infantil, mas perversa. Ele omitiu que durante o século 20 o materialismo filosófico e sua ética foram responsáveis pelo extermínio de mais de 100 milhões de pessoas no mundo através de seus agentes "secularistas" – Stalin, Hitler (Holocausto dos judeus, ciganos, deficientes e homossexuais), Pol Pot, Mao Tsé-tung. Este número suplanta em muito aos que foram lamentavelmente provocados pelas chamadas "guerras religiosas".

Para saber mais:

Darwin no Banco dos Réus, Phillip E. Johnson, Cultura Cristã.

Summer for the Gods, Edward Larson, Nova York, Basic Books, 1997.

A Alma da Ciência, Pearcey/Thaxton.

Ciência, Intolerância e Fé, Phillip E. Johnson, Ultimato, 2004.

As Perguntas Certas, Phillip E. Johnson, Editora Cultura Cristã, 2004.