Escatologia
é uma palavra de origem grega, peculiar ao vocabulário teológico. Ela diz
respeito ao estudo dos eventos finais relacionados à história da Terra e do
gênero humano. Marcada por forte semântica de sobrenaturalidade, a escatologia,
embora negada e combatida pelo racionalismo, faz-se sentir de forma universal
como aura misteriosa a circundar o mundo.
Pressente-se
um intenso “clima de fim” envolvendo os sentimentos, os pensamentos e os
discursos (políticos, religiosos, científicos, filosóficos, etc.) da sociedade
em geral. Estamos tomados por algo que eu chamo de “sensação escatológica”:
certa intuição de insegurança, instabilidade e incerteza que se apossou de
quase todos. É como se os acontecimentos da vida, na esfera individual e
coletiva, rumassem descontroladamente para o precipício, sendo conduzidos até à
consumação. O que está acontecendo?
Desde
tempos muito remotos, formas de apocalipse sempre se fizeram presentes no
inconsciente coletivo da humanidade. A sensação escatológica perpassou crenças,
sistemas e ideologias, sem nunca nos abandonar. No mundo mítico, por exemplo,
com raras exceções, a consciência era permanentemente lembrada acerca do “fim
do mundo”, do Ragnarök ou juízo final em que o céu e a Terra passariam por
perturbações catastróficas, a fim de darem lugar a uma nova realidade. Sob
eventos cíclicos ou lineares, as coisas, os seres e mesmo os deuses
permaneceriam sujeitos à fatalidade, à vontade do cego e inexorável Destino.
Já no
plano filosófico, inaugurando a era da “morte de Deus”, Nietzsche trouxe para a
imanência o elemento escatológico do niilismo. Com sua parábola do homem louco
no mercado bradando “Deus morreu! Deus permanece morto!”, o filósofo do martelo
– um tipo de profeta secular e fenomenólogo certeiro – ao arremessar seu
martelo esmiuçador até mesmo nos píncaros da transcendência, pretendera
vaticinar o colapso das grandes estruturas da civilização ocidental. Assim, moral
cristã, metafísica, ciência e a própria filosofia, na voz nietzscheana, fitaram
o abismo cara a cara. “Naturalmente”, pondera George Siegmund em O Ateísmo Moderno – História e Psicanálise,
“com o desmoronamento da fé em Deus desaba também todo o chão sobre o qual até
então descansavam os valores; o abismo do niilismo que se abre ameaça tragar
tudo [...]. O homem viajante perde assim toda a meta, todo o caminho; vê-se
cercado pela noite purpúrea da loucura”.
Ainda
em tempos de grande luz no campo do saber, os cientistas descrevem cenários
nada promissores, imagens do fim que lançam sombras sobre o nosso planeta e o Universo.
Livros e revistas populares de divulgação científica estão cheios de
“profecias” acerca da consumação de todas as coisas, a exemplo de O Fim da
Terra e do Céu: O apocalipse na ciência e na religião, obra na qual o
físico brasileiro Marcelo Gleiser expõe, numa linguagem meio romanceada e quase
religiosa, que “o fim está próximo!” e “os céus estão caindo”. Afinal, não foi
o grande cientista Stephen Hawking quem declarou: “Apesar de serem baixas as
possibilidades de um desastre no planeta Terra em um ano qualquer, isso vai se
acumulando com o tempo e se transforma em uma quase certeza para os próximos
mil ou dez mil anos”? Seja na concepção científica materialista ou na crença
hindu do Bhagavad Gita, ecoa a voz
escatológica: “Eu sou o Tempo, o grande destruidor.”
Tratando-se
da cosmovisão cristã, a escatologia assume proporções tão grandes que só pode
ser apresentada por meio de símbolos, metáforas e representações apocalípticas.
Os sinais do Armagedom - “a guerra das guerras” - anunciam o fim de tudo
não por causa de colisões cósmicas, morte térmica do Universo ou algo parecido.
O eskhaton, no
pensamento e profecia bíblicos, acontece em razão da direta interferência
divina na História: imperiosa necessidade e única solução para os dramas
humanos globais, pois “os ecologistas observam a desintegração de nosso
planeta, mas parece que ninguém está disposto a fazer alguma coisa a respeito.
Os economistas não conseguem superar seu pessimismo. O desemprego mundial está
crescendo. Parte da população do mundo enfrenta o perigo real de morrer de
fome. É claro, estamos simplesmente acostumados demais com esses números; eles
já não nos incomodam mais. [...] A situação política repousa em solo instável.
A paz é de fato um objetivo quando os poderes mundiais se reúnem. Mas as armas
continuam debaixo da massa de tratados e organizações. Vivemos à sombra de
nuvens atômicas. Não há país que, de alguma forma, não esteja envolvido em
algum tipo de conflito. Todas as ações políticas têm repercussão no cenário
internacional. Quanto ao estado moral da nossa sociedade, é quase
irreconhecível, tão desfigurado se tornou pelo crime, violência, drogas, álcool
e doenças. Ninguém é poupado, pois essa condição afeta todos os níveis da sociedade.
Simultaneamente, tem surgido uma nova raça de homens e mulheres: os
profissionais de sucesso. Quaisquer que tenham sido os nossos ideais artísticos
e morais, eles foram substituídos pelo ideal da nossa sociedade, o único pelo
qual vale a pena lutar: o dinheiro. A virtude agora é proporcional ao
desempenho. A humanidade contemporânea deseja, com todas as forças, se tornar
cada vez mais eficaz e cada vez menos humana. Nossa civilização incita os
piores desastres, mas ainda assim estamos sãos e salvos. Ainda andamos pelas
ruas de nossas cidades. A televisão ainda sussurra as palavras e imagens
encorajadoras de nossa prosperidade; e se isso não acontece, não haveria
problema, pois seria só um filme mesmo! Nós reciclamos. Fazemos exercícios.
Fechamos os olhos e meditamos, recusando enfrentar a lenta putrefação de nossa
sociedade decadente e preferindo ignorar os slogans de uns poucos
excêntricos. Afinal de contas, todos os nossos líderes falam de uma forma que
tranquiliza , e o povo acaba pegando no sono. E as flores do mal germinam por
todos os lados. [...] Não há terra, não há ilha, não há tribo remota que possa
escapar. É um verdadeiro ‘tempo de angústia’.”
Parece
que nos achamos perante o dobre de finados da história; contudo, para o teólogo
cristão, “a cortina não desce na tragédia”. Embora o próprio Jesus tenha
discursado escatologicamente ao afirmar que “os homens desmaiarão de terror,
apreensivos com o que estará sobrevindo ao mundo”, Ele conclui em tom de
esperança: “Quando começarem a acontecer estas coisas, levantem-se e ergam a
cabeça, porque estará próxima a redenção de vocês” (Lucas 21:26, 28). Em
síntese, arrisco afirmar, sob pena de ser considerado supersticiosamente
religioso, que somos seres com uma fixação pelo fim. Nossa natureza mortal e o
peso da finitude geram e desenvolvem em nós esse sentimento escatológico.
Numa
longa entrevista transformada em livro, respondendo à pergunta que lhe fora
feita, o filósofo alemão Martin Heidegger asseverou: “A filosofia não pode
provocar nenhuma alteração imediata do atual estado do mundo. Isso não é válido
apenas em relação à filosofia, mas também a todas as meditações e anseios
meramente humanos. Já só um deus nos pode ainda salvar.” Otimistas ou
pessimistas, teístas ou não, somos todos escatológicos. Imbuídos de tal
sensação, a perspectiva da esperança apoiada em Deus faz toda a diferença.
Frank de Souza Mangabeira