Por muitos séculos
o método mais popular empregado por intérpretes da Bíblia era o alegórico. No
livro Tratado sobre os Princípios, publicado
por Orígenes (185-253 d.C.), é desenvolvida uma teoria hermenêutica advogando
que todo texto bíblico possui três sentidos: o literal, o moral e o alegórico,
sendo que o último deveria ser o mais almejado por intérpretes cristãos. Assim,
objetos, animais, lugares ou pessoas relatadas na Bíblia representam verdades
espirituais além delas mesmas. O conhecimento da natureza era estimulado pela
Igreja na medida em que existissem similitudes
entre a Bíblia e o mundo natural. Os fenômenos naturais que não são mencionados
na Bíblia recebiam pouco interesse. Por esses motivos, a ciência medieval não
era empírica como nos dias de hoje. Os “cientistas” – melhor dizendo, os
filósofos naturais – daquela época realizavam suas pesquisas nas bibliotecas de
suas universidades. Quando se queria saber algo sobre oceanos, as espécies de
plantas ou as estrelas, era para os livros de Aristóteles ou Platão que os especialistas
recorriam. Ciência era entendida como uma atividade de “preservação e
transmissão” do conhecimento obtido por autoridades passadas.
Com o advento do protestantismo,
o método de interpretação alegórica proposto por Orígenes foi abandonado.
Lutero, ao propor uma leitura literal do texto bíblico, rompeu com séculos de
interpretação alegórica e passou a defender uma hermenêutica literalista da
Bíblia. Para Lutero e muitos protestantes, o que importava era o sentido óbvio
que brota do texto. Portanto, ao contrário da hermenêutica medieval, o sentido
literal das palavras encontradas na Bíblia se tornou o alvo principal de
exegetas protestantes.
À semelhança de
muitas outras áreas, as ciências foram especialmente afetadas pelas mudanças
hermenêuticas propostas por Lutero. Sua abordagem literalista do texto bíblico
mudou a forma como cientistas interpretavam fenômenos naturais. A migração de
uma exegese alegórica para uma literal permitiu que estudiosos olhassem para o
texto e, consequentemente, para a natureza, não como algo simbólico, mas como
entidades concretas, possuidoras de valor e significado próprio. A insistência
protestante de que o sentido óbvio das coisas fosse adotado contribuiu para que
a sociedade procurasse maneiras “científicas” de explicar e de encontrar
utilidades práticas para os diferentes fenômenos naturais observados.
De maneira
especial, a leitura literalista do livro de Gênesis mudou a forma de se
relacionar com o mundo natural. Uma vez que a Bíblia foi expurgada de todo misticismo
e mistério que lhes foram conferidos por intérpretes medievais, os eventos, as pessoas
e os lugares relatados na Bíblia passaram a ser vistos como reais e históricos.
As referências à criação, ao jardim do Éden, à queda de Adão e Eva e ao
dilúvio, que em tempos medievais estavam carregados de significados alegóricos
e teológicos, passaram a ser tratados como literais, atraindo esforços de
curiosos para identificar a verdadeira localização desses lugares e eventos.
Como forma de
redenção, os cientistas protestantes passaram a ver na empreita científica uma
forma de restaurar a humanidade à sua condição original. Essa restauração do
ser humano (e da criação, por consequência) deveria se dar em duas frentes. Na
primeira, a mente humana restauraria todas as coisas à sua unidade original
pelo conhecimento do mundo natural. Na segunda, o ser humano assumiria o
controle da natureza e subjugaria todo o domínio natural, retomando sua posição
como vice-regente de Deus na Terra. Ao conhecer seus mistérios, o ser humano se
tornaria como Adão – mestre da criação.
Em suma, além de
muitos outros fatores, a forma como o cristianismo interpretou o texto sagrado
teve uma influência direta na forma como cientistas passaram a interpretar os
fenômenos naturais. O protestantismo contribuiu com o surgimento das ciências
modernas não somente oferecendo um ambiente favorável à realização da atividade
científica, mas fornecendo as ferramentas interpretativas para estudarmos a
natureza. A partir do momento em que o cristianismo começou a adotar uma
leitura literalista, a ciência foi capaz de olhar para a natureza com outros
olhos e buscar o sentido óbvio dos processos e objetos do mundo natural. É uma
ironia pensar que, em nossos dias, o literalismo hermenêutico está sendo
acusado de obstruir o avanço científico e as relações entre a ciência e a
religião. Entretanto, quando estudamos a história do relacionamento entre
religião e ciência, percebemos que a hermenêutica literalista foi exatamente o
fator que forneceu as lentes interpretativas para a revolução científica e o
surgimento das ciências modernas.
(Glauber Araújo é editor na Casa Publicadora
Brasileira, bacharel em Teologia e mestre em Ciências da Religião)
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