O ateísmo, por via de regra, é
associado à racionalidade. Muitos ateus afirmam que não acreditam em uma
entidade superior, mas sim na ciência, como se isso fosse uma garantia de que
essas pessoas pensam de forma mais racional do que aquelas que têm uma religião.
Porém, a própria ciência mostra que as coisas não são bem assim. Em um artigo
publicado no site The Conversation, a professora Lois Lee, do Departamento de
Estudos Religiosos da Universidade de Kent, na Inglaterra, desconstrói essa
imagem e mostra como a ciência prova que ateus não são mais racionais que
pessoas religiosas. “Muitos ateus pensam que o ateísmo é produto do pensamento
racional. Eles usam argumentos como ‘eu não acredito em Deus, acredito na
ciência’ para explicar que a evidência e a lógica, em vez da crença e do dogma
sobrenatural, sustentam o pensamento deles. Mas só porque você acredita em
pesquisa científica baseada em evidências – que está sujeita a verificações e
procedimentos rigorosos – não significa que sua mente funcione da mesma
maneira”, afirma no texto.
“O problema que qualquer pensador
racional precisa resolver, no entanto, é que a ciência mostra cada vez mais que
os ateus não são mais racionais que os teístas. De fato, os ateus são tão
suscetíveis quanto qualquer pessoa a ‘pensar em grupo’ e outras formas não racionais
de cognição. Por exemplo, pessoas religiosas e não religiosas podem acabar
seguindo indivíduos carismáticos sem questioná-los”, argumenta a pesquisadora.
Ela diz que a própria crença ateísta
não tem a ver com o pensamento racional, mas sim com outros fatores. “Sabemos
agora, por exemplo, que filhos não religiosos de pais religiosos rejeitam suas
crenças por razões que têm pouco a ver com o raciocínio intelectual. A mais
recente pesquisa cognitiva mostra que o fator decisivo é aprender com o que os
pais fazem e não com o que eles dizem. Então, se um pai diz que é cristão, mas perdeu o hábito de fazer as coisas que
dizem que devem importar – como rezar ou ir à igreja – os filhos simplesmente
não acreditam que a religião faz sentido”, aponta.
“Isso é perfeitamente racional em
certo sentido, mas as crianças não estão processando isso em um nível
cognitivo. Ao longo da nossa história evolutiva [sic], os humanos muitas vezes
não tinham tempo para examinar e avaliar as evidências – precisando fazer
avaliações rápidas. Isso significa que as crianças, até certo ponto, apenas
absorvem as informações cruciais, que nesse caso é que a crença religiosa não
parece importar da maneira como os pais estão dizendo”, relaciona no texto.
Lee afirma que mesmo crianças mais
velhas e adolescentes, ainda que reflitam sobre o tema, não possuem um contato
tão independente quanto pensam. “Pesquisas estão demonstrando que os pais ateus
(e outros) transmitem suas crenças aos filhos de maneira semelhante aos pais
religiosos – compartilhando sua cultura tanto quanto seus argumentos”,
afirma a pesquisadora. Ou seja, os filhos de pais que não possuem nenhuma
religião são tão influenciados quanto aqueles que são filhos de religiosos. “Alguns pais entendem que seus filhos devem
escolher suas crenças por si mesmos, mas o que eles fazem é passar (aos filhos)
certas maneiras de pensar sobre religião, como a ideia de que religião é uma
questão de escolha e não de verdade divina. Não é de surpreender que quase
todas essas crianças – 95% – acabem ‘escolhendo’ ser ateias”, acredita ela.
Mas será que ateus não são mais
propensos a aceitar a ciência do que as pessoas religiosas? Lee afirma que a
resposta para essa pergunta depende da crença e que, em alguns casos, ateus
tendem a se afastar do conhecimento científico mais do que pessoas religiosas.
“Muitos sistemas de crenças podem estar mais ou menos intimamente integrados ao
conhecimento científico. Alguns sistemas de crenças são abertamente críticos em
relação à ciência, enquanto outros estão extremamente preocupados em aprender e
responder ao conhecimento científico. Mas essa diferença não mapeia nitidamente
se você é religioso ou não. Algumas
tradições protestantes, por exemplo, veem a racionalidade ou o pensamento
científico como centrais em suas vidas religiosas. Enquanto isso, uma nova
geração de ateus pós-modernos destaca os limites do conhecimento humano e vê o
conhecimento científico como altamente limitado, problemático até, especialmente
quando se trata de questões existenciais e éticas. Esses ateus podem, por
exemplo, seguir pensadores como Charles Baudelaire na visão de que o
conhecimento verdadeiro é encontrado apenas na expressão artística”,
relaciona no texto. [...]
O papel da ciência para muitos ateus
não é exercido apenas no campo da racionalidade. Lee diz que o conhecimento
científico pode fornecer as realizações filosóficas, éticas, míticas e
estéticas que as crenças religiosas fazem pelos teístas. “A ciência do mundo
biológico, por exemplo, é muito mais do que um tópico de curiosidade
intelectual – para alguns ateus, fornece significado e conforto da mesma
maneira que a crença em Deus pode fazer para os teístas. Os psicólogos mostram
que a crença na ciência aumenta em face do estresse e da ansiedade
existencial, assim como as crenças religiosas se intensificam para os teístas
nessas situações”, compara.
A estudiosa argumenta que não ser
racional, porém, não precisa ser necessariamente algo ruim. “Claramente, a
ideia de que ser ateu depende apenas da racionalidade está começando a parecer
claramente irracional. Mas a boa notícia para todos os envolvidos é que a
racionalidade é superestimada. A engenhosidade humana repousa em muito mais do
que no pensamento racional. [...] A capacidade de tomar decisões rápidas,
seguir nossas paixões e atuar na intuição também são qualidades humanas
importantes e cruciais para o nosso sucesso”, aponta.
Lee finaliza seu texto falando sobre
a importância da ciência, mas argumenta que nós, seres humanos, precisamos de
um pouco de irracionalidade, independentemente do que acreditamos ou não. “É
útil que tenhamos inventado algo que, ao contrário de nossas mentes, é racional
e baseado em evidências: a ciência [aqui há um erro conceitual, já que a
ciência não foi inventada pelo ser humano, foi descoberta por ele]. Quando precisamos de provas adequadas, a ciência pode muitas vezes fornecer
isso – desde que o tópico seja testável. Importante, a evidência científica não tende a apoiar a visão de que o ateísmo é
sobre o pensamento racional e o teísmo é sobre realizações existenciais. A
verdade é que os humanos não são como a ciência – nenhum de nós vive sem ações
irracionais, nem sem fontes de significado e conforto existencial. Felizmente,
porém, ninguém precisa.”
(The Conversation, via Hypescience)