“E eis que estou convosco todos os
dias, até a consumação dos séculos.” Mateus 28:20
A tragédia é a marca da condição humana. C’est la vie (é a vida) diriam os trágicos à moda grega, para os
quais a existência é vista como sofrimento e castigo, um drama tecido por algo
maior: o cego e impessoal Destino. Ésquilo, Sófocles e Eurípedes – três grandes
representantes da antiga tragédia grega – deixaram obras em que angústia,
punição, conflito, vingança, desagregação e morte são as forças elementares da vida
dos homens e mesmo dos deuses. Prometeu
Acorrentado, Édipo Rei, Medeia, As Eumênides, Antígona
são alguns exemplos literários da condição trágica que permeou, desde a
antiguidade até nossa época, o pensamento de poetas, escritores e filósofos.
Sobre tragédias, o “caso Nietzsche” é interessante e
problemático. O filósofo do amor fati
sabendo que um tremor de terra destruíra algumas casas em Nice, não reprimiu
sua “alegria”. Segundo Luc Ferry – autor de Aprender
a Viver: Filosofia para os novos tempos –, diante dessa catástrofe pontual,
o contentamento de Nietzsche veio acompanhado de estranha e desapiedada frustração:
“Infelizmente, o desastre é menor do que o previsto. Felizmente, algum tempo
depois, ele se recupera ao saber que um cataclismo arrasou a ilha de Java:
‘Duzentos mil seres aniquilados de uma só vez [diz ele ao amigo Lanzky] é
magnífico! [sic!]... A destruição radical de Nice e dos nicenses é que seria
necessária...’” Espantosa para nós é a reação nietzscheana perante a tragédia: reação
desprovida de compaixão, moral, ética, valores, transcendência ou qualquer olhar
escatológico que contemple uma solução cósmica e extramundana por meio da
intervenção do Outro. De fato, nada poderíamos esperar do filósofo do martelo a
não ser a “rendição heroica” ao destino fatalista, revestida de sinistra euforia.
Como expressou certo pensador, “o homem nietzscheano se
compraz em cada realidade. Ele a vive vigorosa e alegremente, mesmo sob as dores
mais atrozes. Mais heroico que o resignado Sísifo, o Super-homem rola a sua
pedra... assobiando. O herói trágico proposto por Nietzsche é o homem
dionisíaco que afirma a vida inesgotável com inalterável alegria, indo nessa
afirmação até o sacrifício e aniquilamento. Mostrando-se, assim, superior ao
seu destino, ele se tem por vencedor. [...] Em suma, se, para Nietzsche, o
absurdo é congênito à vida, a atitude humana mais elevada só pode ser esta:
assumir a tragédia da vida lucidamente (encarando-a), heroicamente (com os
punhos cerrados) e ludicamente (assobiando). Esta seria, para ele, a suprema
lição dos gregos, como afirma já em sua primeira obra O Nascimento da Tragédia: a vida termina em tragédia, mas o herói a
enfrenta altivamente através de sua ‘vontade de potência’”.
No entanto, “sem uma escatologia transterrena, a vida seria
uma procissão de ‘mortos enterrando outros mortos’ (Mt 8:22), ou seja, o mundo
não passaria de um grande cemitério em que alguns são mortos-mortos e outros
mortos-vivos. Visão macabra! Mas não vai nessa direção o imanentismo moderno? A
resposta que lhe dão seus grandes representantes é a do herói trágico:
enfrentar a aniquilação da morte ‘de viseira levantada’. Que é isso, senão pose
de valentão impotente? [...] Antes, graças à esperança eterna, a vida, com
todas as suas vicissitudes, fica iluminada como por uma luz de aurora. Para o homo religiosus, esta vida não é a
‘vida’, mas apenas a ‘via’ para a vida. ‘Ninguém mora na via, mas anda’”.
As tragédias persistem de século em século, configurando o
mundo e a nossa forma de enxergá-lo. Diante do trágico, porém, a grandeza do
homem consistiria, conforme Albert Camus, “na sua decisão de ser mais forte que
a condição humana”. Pergunta-se: Somos capazes de tal fortaleza e resistência sem
uma compreensão revelada acerca do que a teologia convencionou chamar de “o
grande conflito” – metanarrativa na qual o bem triunfará definitivamente sobre
o mal e sobre todas as formas de sofrimento? Em contraponto e antítese ao amor fati, como deve reagir e viver o
cristão (que não adere ao “otimismo trágico” no sentido filosófico dessa
expressão) quando se defronta com as tragédias de um mundo que soluça e chora
incessantemente? A resposta é direta: com olhar profético, alegria e esperança,
centrando a atenção nAquele que vem – o Filho do Homem, o Filho de Deus. Tal
postura não é fácil e só pode ser adotada pelo homem de fé.
Para o homem de fé e espírito escatológico orientado pela
Bíblia, o que são as tragédias globais a ocorrerem atualmente? Elas são signos
ou sinais do desespero das forças do mal, mostrando que a Terra clama por uma
intervenção. Quando Jesus proferiu o sermão profético no Monte das Oliveiras, procurou
prender a atenção de Seus discípulos ao “sinal do Filho do Homem” (Mateus
24:30) – uma marca positiva, contrária aos sinais malignos que preencheriam o
espaço histórico entre a ascensão de Cristo e Seu retorno glorioso ao planeta.
Os eventos catastróficos, o desequilíbrio na natureza, os enganos religiosos,
os rumores de guerra e o caos social descritos no capítulo 24 do livro de
Mateus são avisos do Mestre de que viria uma insistente pregação satânica ao
mundo, tentando-nos a descrer do amor de Deus e a desistir da fé e da esperança
escatológica. Todavia, nesse turbilhão de forças destrutivas, Jesus não
enfatiza os horrores do mundo, mas a solução divina mediante o “evangelho do
reino”, o qual inclui alegria paradoxal no presente e redenção completa no
porvir: “Filhos Meus de todas as épocas, não se concentrem nos sinais, mas no sinal.
Vocês testemunharão muitas guerras, serão perseguidos. Verão grandes e inúmeros
terremotos, as doenças proliferarão e falsos conceitos de Deus irão surgir.
Tudo isso se intensificará no lapso histórico que precede o Meu retorno ao
mundo. Porém, estou com vocês neste tempo confuso de angústia. Fiz a promessa
de que virei outra vez; portanto, levantem a cabeça! Aprontem-se e aguardem-Me
com esperançosa e ativa expectativa. No contexto das tragédias, sejam o sal e a
luz deste mundo sofredor.”
Sim, vem a hora em que o evangelho eterno – a boa notícia –
se espalhará pelo mundo num alto clamor, soando acima do “sermão de Satanás” e declarando
que o fim é chegado: o fim do mal e do pecado. Compreendida assim, a teologia
do grande conflito nos enche de fé e confiança, descortinando os bastidores da
luta titânica entre poderes grandiosos e antagônicos e revelando os esforços
sacrificais de Cristo para trazer redenção e paz eterna, pois “de nada nos
valeria ter nascido se não fosse para sermos redimidos”. Em vista disso, os
cristãos que tomam a segura palavra profética na mente e no coração, levando-a
a sério e vivendo de acordo com seus ensinamentos, não são heróis trágicos no meio
de uma batalha existencial. Verdadeiramente, compreendem a origem dessa guerra
milenar e sofrem no transcurso dela, aguardando o seu desfecho – o Armagedom.
Compreendem que “tudo no mundo está em agitação. [...] Os acontecimentos por
vir projetam sua sombra diante de si. O Espírito de Deus está sendo retirado da
Terra, e calamidade segue-se a calamidade em terra e mar. Há tempestades,
terremotos, incêndios, inundações, homicídios de toda espécie. Quem pode ler o
futuro? Onde está a segurança? Não há certeza em coisa alguma humana ou
terrena”.
Em conversa por e-mail com uma amiga sofredora, expressei-me
assim: “Amiga, o sofrimento requer um livramento, uma solução, um milagre: esse
é o nosso desejo. Frustramo-nos, porém, porque, como regra, o aqui e agora
comportam-se como carrascos de nossa condição existencial. Em face de tal
realidade, nosso consolo, na maioria das vezes, restringe-se a
compartilhar o eu sofredor, dando-lhe expressão à escuta de alguém
sensível. Defronta-nos o medo que, tal qual a Hidra de Lerna mitológica,
corta-se uma cabeça apenas para vê-la renascer em nova ameaça. A força humana
sozinha nada pode, efetivamente, contra esse
monstro gigantesco. Se é dessa maneira, deveríamos parar de lutar?
Não! Entretanto, precisamos de ajuda. Nesse sentido, bem apropriados aos
sofredores de uma dimensão finita são o exemplo e a súplica de Jesus:
‘Meu Pai, se possível, afasta de Mim este cálice; contudo, não seja como
Eu quero, mas sim como Tu queres.’ Difícil orar como Jesus orou?
Claro! Todavia, não há escapatória para o cristão. Necessitamos de
coragem sobrenatural para aceitar a cruz, mas também de perspectiva
e confiança sobrenaturais para acreditar na ressurreição logo à frente.
Embora em nosso Getsêmani só vislumbremos trevas e becos sem
saída, sendo massacrados pela opressão do inimigo, somos encorajados
a atravessar o caminho escuro, sustentando-nos em nosso Pai,
muitas vezes oculto e misterioso para a mentalidade e visão de seres humanos
fragmentados por tragédias.”
No plano individual, o cristão convive com a escuridão da
cruz. Porém, na noite de sua vida, ele espera o amanhecer anunciado pela
promessa de uma feliz e plena existência imortal, ainda que não descarte aqui a
mudança para uma “boa sorte” concedida pelos favores da Providência. O mundo é
agridoce. O forte e azedo sabor das tragédias pode ser suavizado pelo melífluo
amor de Deus, que tudo transforma, redime e modifica. Certamente, as tragédias
farão parte de nossa contingência até a consumação dos séculos. Contudo, por
mais tenazes que sejam, o fim delas já foi profeticamente determinado. Por
isso, o “otimismo cristão” enxerga além dos fatos e dos acontecimentos tristes
reinantes sobre a cabeça de todos nós. Em visão antecipada, ele contempla o dia
quando todas as dores do mundo se dissiparão ante Aquele que pisou o solo deste
mundo sofredor, experimentando em Si mesmo uma tragédia infinita.
O presente é sombrio e trágico, mas o futuro será,
definitivamente, luminoso e feliz. “Está consumado!” “Está feito!”
(Frank de Souza Mangabeira, membro da Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE; servidor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)