Dois lados da mesma moeda |
No texto anterior, vimos que o processo indutivo, ainda que tenha
premissas verdadeiras, pode levar um observador atento a conclusões falsas. Por
isso, ele não seria um critério seguro para demarcar “o que é” e “o que não é”
ciência. Ele é importante, mas tem seus limites. Aqui, quero explorar melhor
essa questão. Arrisco-me a dizer que o x da questão não é apenas que uma
observação pode induzir alguém a uma conclusão falsa. A grande questão é que
toda observação só faz sentido à luz de algum tipo de teoria. Comecemos
com Charles Darwin (1809-1882). O cientista inglês era muito perspicaz, não
apenas na biologia, mas em outras áreas envolvendo filosofia da ciência. Em
1861, ele escreveu uma carta a Henry Fawcett sobre uma situação curiosa que
ocorreu no passado com os geólogos britânicos. Era o início do século 19 e os
membros da Geological Society de Londres estavam cansados de intermináveis
discussões teóricas e de explicações cada vez mais vazias sobre o
desenvolvimento do planeta Terra. Assim, tomaram uma decisão extremista: não
haveria mais discussões teóricas em suas reuniões. Eles apenas contemplariam
“os fatos”, coletariam informações e fariam observações diretas. E, quando tivessem
um conjunto relativamente significativo de dados, poderiam partir para uma
teorização que fosse mais expressiva e consistente. Pelo menos era assim que pensavam.
A visão de Darwin sobre o episódio é muito relevante:
“Há
cerca de trinta anos, falou-se muito que os geólogos deveriam apenas observar,
e não teorizar; e lembro-me bem de alguém dizer que, nesse ritmo, seria melhor
um homem entrar numa pedreira e contar os pedregulhos e descrever as cores.
Estranho que ninguém tenha visto que toda observação deve ser a favor ou contra
alguma concepção para ter alguma serventia!”
O
falecido Stephen Jay Gould (1941-2002) achou tão significativa essa última
frase para pensar sobre o funcionamento da ciência que ela virou sua máxima
preferida. “Toda observação deve ser a favor ou contra alguma concepção para
ter alguma serventia!” Em outras palavras, uma observação só faz sentido à luz
de uma teoria. Aliás, qualquer observação só faz sentido se uma teoria estiver
pressuposta para lhe dar alguma base.
Pense
no exemplo do próprio Darwin: sem uma teoria, como os geólogos saberiam qual rocha
seria expressiva para observação e qual deveria ser ignorada? Aliás, alguma
deveria ser ignorada? Eu teria que olhar e descrever todo tipo de rocha de um
determinado espaço? Se sim, de que espaço? Para qual observação eu faria as
anotações? E o que eu anotaria das rochas? Seria relevante anotar a cor? O
tamanho? O peso? O formato? Ou essas coisas não têm importância? Seria
pertinente anotar que eu encontrei uma rocha x, perto da rocha y, na camada z? Ou
isso é irrelevante? Alguém pode se interessar por uma determinada rachadura,
mas rachaduras são importantes? Sem uma teoria para dialogar é impossível
responder de forma satisfatória a qualquer uma dessas perguntas. Elas exigem
algum nível de teorização, algum tipo de abstração conceitual a fim de fazerem
algum sentido.
Aliás,
essas perguntas já pressupõem algum nível de teorização, e quanto mais
sofisticadas forem as teorias que estiverem pressupostas, melhores serão as
perguntas e mais aportes teóricos serão necessários a fim de guiar determinado
experimento. Afinal, se eu fizer uma anotação de que encontrei a rocha x na
camada y, ela só terá valor porque parto de uma teoria que me diz que, ao
encontrar uma rocha numa determinada camada geológica, ela pode me indicar seu
ambiente de formação e sua idade. Sem essa teorização, por que eu anotaria onde
encontrei determinada rocha?
Um
exemplo de observação esquisita poderia lançar luz maior sobre essa questão. Certa
vez, Johannes Kepler (1571-1630) anotou em seu caderno: “Marte é quadrado e
intensamente colorido.” O adjetivo “esquisita” demonstra bem minhas
pressuposições: hoje sabemos que Marte não é quadrado, nem intensamente colorido.
Como alguém pode se dar ao absurdo de anotar que um planeta é quadrado e colorido?
Um
leitor mais atento diria que o erro de Kepler era fruto de uma observação feita
em um telescópio galileano. Outro explicaria que a anotação de Kepler é irrelevante
porque, na época dele, não se sabia que um planeta é esférico porque a força
gravitacional dele atrai tudo para seu centro, incluindo sua massa, conferindo,
assim, a forma esférica que ele possui. Ainda outro esclareceria que Marte tem
uma aparência avermelhada, fruto das enormes extensões de solo árido de sua
superfície.
Aqui,
o importante é observar que todas essas correções não são fruto de uma
observação versus outra, mas pressupõem
algum tipo de teoria, seja ela decorrente do funcionamento da gravidade de um
planeta, seja do seu formato, seja do seu solo, seja ainda de um possível erro óptico
que um telescópio galileano pode ocasionar. Mas, para eu ter a noção de que,
ainda que veja no meu telescópio um planeta quadrado, essa observação não é
segura ou não é relevante, é preciso que eu tenha em mente uma teoria sobre a
formação dos planetas. Se assim não for, por que não seria relevante anotar que
o formato do planeta que estou vendo é quadrado? Isso me traz um alerta
importante: na ciência, uma teoria falsa e incompleta pode dar orientações
falsas e incompletas, mesmo que eu seja um bom observador.
Teorias
são importantes justamente por isto: elas ajudam a lançar luz nas observações
que precisam ser feitas. Elas me auxiliam, me guiam a fim de que eu não faça
uma lista interminável de observações vazias ou colete uma série de dados que
sejam totalmente sem sentido. Por outro lado, as observações lançam luz sobre
as teorias, ajudando a refiná-las e a aperfeiçoá-las. Ambas são como dois lados
de uma mesma moeda: não há a possibilidade de existir um sem o outro.
(Bruno Ribeiro é formando em Comunicação Social [Rádio e TV]
pela Universidade Federal da Paraíba e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação
em Comunicação na mesma instituição)
Referências:
CHALMERS,
Alan. O que é ciência afinal? São
Paulo: Brasiliense, 1993.
GOULD,
Stephen Jay. Dinossauro no palheiro:
reflexões sobre história natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MOURÃO,
R. R. Freitas. O livro de ouro do
Universo. Rio de Janeiro: Pocket Ouro, 2000.