Simulacro da realidade |
Na
padaria, pego um jornal popular, desses que salvam as gráficas da inatividade,
e formulo uma regra de ouro: “Quanto mais a gente distrair o trabalhador e
esconder o que de fato importa, melhor para o capital.” Daí, tanta mulher de vitrine.
Não de verdade, mas aquelas fabricadas na academia, na iluminação e no Photoshop
(“Se a modelo é baixinha, a gente diminui o tamanho da cadeira, da mesa, do que
aparece”, ensinou-me, há mais de 40 anos, o fotógrafo da Manchete. “As baixinhas ficam muito gostosas quando parecem
maiores.”)
E
futebol. Tem sempre um campeonato, senão a gente inventa. E um craque, senão a
gente cria. (Conheci um editor que viajava pelo interior do fim do mundo;
quando encontrava um garoto bom de bola, arrumava contrato de gaveta, trazia
para a capital, enfiava num time qualquer; logo, na matéria do jornal, o rapaz
era o maior craque. Deu duas tacadas certas e ficou rico.)
E
crime. Aí é uma questão de moda e o trato com a polícia uma relação em que
todos ganham, com rusgas de vez em quando. Tem temporada de assalto, de
sequestro, de vigaristas... Agora, a moda é estupro. Mas sempre pinta um bom
crime passional, caso que estica duas, três semanas... ouro puro! Aí, basta
pegar o que sobra dos grandes jornais. (Na verdade, os crimes que ficam na
memória das gentes são aqueles que revelam aspectos inéditos da sociedade ou da
alma humana, do Febrônio a Aída Curi, de Claudia Lessin a Suzana Richtoffen.)
E
fofocas. Os famosos: o que fazem, o que vestem, com quem andam, principalmente com
quem dormem. Há famosos para todos os gostos e ninguém mais criativo do que assessor
de imprensa de famoso. A televisão é um mostruário deles; pega-se carona nos
humorísticos e nas novelas das seis, sete, no máximo, das nove (depois, os
trabalhadores estão dormindo). No caso, interessam os famosos bem bregas.
Nada
deprimente, exceto os crimes que dão ao veículo o indispensável “efeito de real”
de que fala Barthes. A vida, para esse público, já é bastante.
Um
perigo nesse tipo de edição, é ir longe demais no desprezo pela inteligência
dos leitores. Não se pode agredir a percepção que eles têm da realidade
imediata; apenas se fala pouco dela e a toma como fato consumado. Também não se
pode engrossar muito as piadas: eles levam o jornal para casa e não gostam que
as crianças leiam sacanagem.
(Nilson Lage, via
Facebook)