sexta-feira, novembro 13, 2009

Neoateísmo: o novo nome da velha descrença

A revista Galileu do mês passado sem querer ajudou a reforçar o tema da minha dissertação de mestrado ao publicar o seguinte subtítulo na matéria "Deus está morto?": "Livro e filme recém-lançados engrossam o coro dos neoateístas e juntam novos argumentos contra a fé religiosa" (p. 72). A questão é: Será que o neoateísmo é toda essa novidade que a mídia vem apregoando ou se trata unicamente do velho ateísmo com seus argumentos surrados, mas agora grandemente incensados pelos meios de comunicação? A matéria (nem dá pra chamar de reportagem, pois "ouviu" apenas um lado), à semelhança de outros textos panfletários publicados nas páginas de Galileu e Superinteressante, se sustenta apenas em duas fontes: o novo livro do ateu Sam Harris, A Morte da Fé - Religião, Terror e o Futuro da Razão, e o mal educado documentário do comediante Bill Maher, Religulous - Que o Céu Nos Ajude (religulous é a mistura das palavras "religioso" e "ridículo"). Mas, afinal, esse livro e o filme trazem algo de novo à controvérsia entre ateus e teístas? Vejamos.

Pra começo de conversa, a matéria da Galileu é tremendamente ufanista e supercial, desprezando séculos de discussões teológicas e afirmando que o vídeo e o livro de Harris "têm em comum a oferta de bem-nutridos argumentos para demolir de vez o mais resistente dos mitos: Deus". E os "argumentos demolidores" são: (1) a Bíblia é ultrapassada porque, segundo eles, afirma que a Terra é plana; (2) a Bíblia não pode ter sido escrita por Deus; (3) a religião é causa de conflitos humanos passados e presentes; (4) a religião é intrinsecamente intolerante; (5) a fé não é sustentada por provas concretas.

Confesso que dá até preguiça comentar esses pontos, mas vamos lá...

1. Segundo o livro Inventando a Terra Plana, de Jefrey Burton Russel, a Bíblia não apresenta o mito da Terra plana e muito menos a tese geocentrista. Esse é um grande mal entendido histórico que os neoateus insistem em desconhecer e vivem trombeteando.

2. A Bíblia, de fato, não foi escrita por Deus. Isso é básico para quem a lê. Mas Harris escreveu: "A crença de que certos livros foram escritos por Deus (que, por motivos misteriosos, fez Shakespeare um escritor muito melhor do que Ele mesmo) nos deixa impotentes para lidar com a causa mais poderosa dos conflitos humanos, passados e presentes." Foram seres humanos que, inspirados por Deus, escreveram a Bíblia e ela própria afirma isso - mas, pelo jeito, nem Harris, nem o autor da matéria a leram. (Recomendo a leitura do texto "A Bíblia Sagrada é inerrante?")

3. Extremistas religiosos realmente fizeram coisas erradas em nome da religião. Tivemos as Cruzadas, a "Santa" Inquisição e temos os terroristas islâmicos. Mas isso não signifca que todos os religiosos sejam assassinos. Aliás, se quisermos saber o que é o verdadeiro Cristianismo, temos que conhecer a pessoa e as propostas do fundador do Cristianismo: Jesus Cristo. Ele jamais faria o que alguns têm feito em nome da religião. Na verdade, Jesus deu a vida pelos que O perseguiram. Para Harris, o antídoto para a progressão da barbárie no século 21 estaria no esvaziamento do poder ra religião. Errado. Estaria no combate aos grupos terroristas de qualquer tipo. Aliás, sempre é bom lembrar (porque a mídia secular parece esquecer) que, segundo O Livro Negro do Comunismo, os regimes comunistas ateus foram responsáveis por mais de 100 milhões de mortes, muito mais do que a Inquisição e as Cruzadas somadas. Mas isso não significa que todos os ateus e todos os comunistas sejam assassinos e que tenhamos que combatê-los. Repito: temos que combater os assassinos, quer sejam "religiosos", quer sejam ateus.

4. Intolerante é quem prega que deve existir liberdade de pensamento, desde que não seja o pensamento religioso.

5. É verdade que a fé "é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem" (Hb 11:1). Mas isso não significa que não haja evidências que substanciem essa fé. A arqueologia, por exemplo, demonstra que o pano de fundo histórico das Escrituras (que alimentam em parte essa fé) é fidedigno. Por que a mensagem religiosa desse livro também não seria confiável? Galileu sustenta que só devemos nos convencer "de que alguma afirmação é verdadeira se ela for sustentada por provas concretas" e que "fé não é nada mais que a disposição para aguardar as provas". Pois bem, então ateus e darwinistas são pessoas de muita fé. Claro, afinal, onde estão as "provas concretas" do surgimento da vida a partir da não-vida? Onde estão as "provas concretas" de que a informação complexa especificada da qual a vida depende simplesmente surgiu em algum momento? Finalmente, onde estão as "provas concretas" da não existência de Deus?

Além de comparar a fé cristã à crença em astrologia, feitiçaria e ovnis (pra variar), a matéria menciona um trecho do filme Religulous: diante de um cristão, o apresentador lança a pergunta: "Já que você sabe que vai para o Paraíso, por que não se mata?" Pois é, esse é o nível do "documentário" que serve - junto com o livro de Harris - de coluna vertebral para a matéria de Galileu.

Para encerrar, eu não poderia deixar de comentar sobre as fotos de mau gosto que ilustram a matéria, como a do crucifixo caído no chão, o menorah (castiçal) derrubado, e a pior: uma mulher deixando a burca no chão e saindo - ao que tudo indica - nua. Neste caso, Galileu vai de um extremo ao outro: do absurdo da vestimenta islâmica que isola a mulher do mundo à sugestão de que a liberdade consiste em libertinagem. São fotos grandes, duas delas de página inteira, talvez para "encher linguiça" e esticar o texto que ocuparia no máximo três páginas.

Ainda estou esperando os "argumentos demolidores".

Michelson Borges

Se você quiser se aprofundar no assunto, sugiro a leitura dos seguintes livros, entre outros que nunca apareceram nas páginas de certas revistas: Um Ateu Garante: Deus Existe, Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu, Ortodoxia, As Grandes Questões Sobre a Fé (de Jonathan Hill), O Delírio de Dawkins, Escavando a Verdade e Por Que Creio.