sexta-feira, novembro 06, 2009

O Concílio de Vichy

O estadista britânico Winston Churchill costumava dizer que a coragem é a primeira das virtudes, pois, faltando essa, as demais desaparecem. Esse aforismo pôde ser comprovado durante a política beligerante do nazismo na segunda metade da década de 1930. À História.

Em 1938, os primeiros-ministros Neville Chamberlain, pelo Reino Unido, e Édouard Daladier, pela França, assinaram com Hitler e Mussolini o malfadado Tratado de Munique, garantindo à Alemanha a anexação dos Sudetos, parte da antiga Tchecoslováquia. Semelhante à moça que permite liberdades ao namorado calculando que assim mitigará suas pulsões, Chamberlain estava plenamente convicto de que suas concessões poriam limite ao ímpeto expansionista alemão. Semelhante ao jovem que interpreta a passividade da namorada como um convite a novas e mais ousadas investidas, Hitler entusiasmou-se; meses após tomar os Sudetos, ocupou toda a Tchecoslováquia; no ano seguinte, massacraria a Polônia, dando início à Segunda Guerra.

Seria instrutivo atentar para o alívio que se seguiu imediatamente ao acordo que sacrificava a Tchecoslováquia. Enquanto o primeiro-ministro britânico regia o coro dos otimistas (“a paz está assegurada”), um e outro descontentes, como o escritor católico Georges Bernanos,* alertavam para a “alegria ignóbil”. Churchill, sempre ele, foi mais incisivo: “Entre a guerra e a desonra, preferiram a desonra, e terão a guerra.” Não poderia ter sido mais profético. Entre setembro de 1939 e maio de 1940, seguiu-se a chamada “Guerra de Fancaria”, quase sem confrontos armados entre os países signatários do tratado. Até que os alemães atropelaram os Países Baixos, atraindo a defensiva de ingleses e franceses para a fronteira da Bélgica enquanto cruzavam a acidentada floresta de Ardenas. Em 14 de junho, tomaram Paris. Em 22 de junho, a França se rendia. Vichy, estância termal situada no centro geográfico do país, passou a sediar o governo fantoche e colaboracionista do Marechal Pétain. A França se tornou vassala da Alemanha, obrigando-se a fornecer víveres e insumos industriais para a máquina de guerra alemã e judeus para os campos de concentração. Desmoralizado e abatido, Chamberlain morreria em novembro do fatídico ano na incerteza do que o futuro reservava à Grã-Bretanha.

Pode-se traçar alguns paralelos entre a vergonhosa República de Vichy e a não menos humilhante cosmovisão de certos segmentos do Cristianismo de hoje. Desde o século 19, o naturalismo mecanicista vem contrabandeando filosofia ateia para dentro das universidades e centros de pesquisa científica. E o cristão capitulou. O ateísmo impôs sua compreensão secularista como a única e confiável forma de interpretar a realidade. E o cristão capitulou. Os próceres da Síntese Evolutiva Moderna, autocomparados com cães de guarda e de guerra, rosnam para qualquer balbucio dissonante. E o cristão capitulou. Parafraseando Churchill: entre os anéis e os dedos, entregaram os dedos, e perderão os anéis.

Assim, parece-me adequado o termo Concílio** de Vichy para esse conjunto indefinido e heterogêneo de denominações cristãs que, às vezes pouco, às vezes muito, relativiza o registro histórico dos textos sagrados, obrigando seus membros a interiorizar suas crenças como se essas fossem idiossincrasias, fraquezas, excentricidades. O resultado não poderia ser diferente. Com a Palavra de Deus reduzida a fábulas piedosas, o cristão de hoje é pouco mais que um eunuco espiritual, sem estofo, sem presença, sem importância, por vezes até indesejado nos debates de interesse público. Sublima ele sua fé em ritos mecânicos e vazios ou metodicamente passionais. Mesmo as preciosas ações de caridade das igrejas parecem pragmáticas, como a acenar ao mundo: “Sim, há Adão e Matusalém, sua longevidade de séculos, o dilúvio universal, os milagres, a ressurreição e várias outras alegorias de um livro extemporâneo. Mas, em compensação, quantas e quão boas obras oferecemos à sociedade!” Causa-nos constrangimento defender a criação literal do mundo em seis dias ocorrida há seis milênios? Vejamos o que Jesus nos teria a dizer a esse respeito: “Porque, quem se envergonhar de Mim e das minhas palavras, dele Se envergonhará o Filho do homem, quando vier na Sua glória, e na do Pai e dos santos anjos” (Lucas 9:26).

Não. O pragmatismo não justifica o relativismo. Ante a agressividade e intolerância do relativismo e do pragmatismo que o ateísmo militante nos impinge, é chegada a hora de as igrejas cristãs atenderem ao apelo de Josué: “Temei ao Senhor, e servi-o com sinceridade e com verdade; deitai fora os deuses a que serviram vossos pais dalém do Rio, e no Egito, e servi ao Senhor. Mas, se vos parece mal o servirdes ao Senhor, escolhei hoje a quem haveis de servir; se aos deuses a quem serviram vossos pais, que estavam além do Rio, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais. Porém eu e a minha casa serviremos ao Senhor” (Josué 24:14, 15).

Existem bases científicas e materiais para uma afirmação positiva da história do Universo, da vida e da família humana segundo o exposto nas Sagradas Escrituras? Sim, e quantas! Como igreja cristã, cabe-nos decidir, sem prejuízo da evangelização tradicional, se vale a pena coligir esse vasto material para confrontar nossos sicários em seu próprio terreno ou simplesmente nos conformarmos com a progressiva irrelevância (e, nesse caso, delegarmos integralmente ao Espírito Santo as responsabilidades que assumimos no tanque batismal).

(Marco Dourado, de Curitiba, PR, com exclusividade para o blog Criacionismo)

(*) Referente ao patético das ilusões infundadas, Bernanos brindou-nos com a seguinte pérola: “O otimismo é uma falsa esperança para uso dos frouxos e imbecis. A verdadeira esperança é uma qualidade, uma determinação heróica da alma. E a mais elevada forma de esperança é o desespero superado.”

(**) Sim, o termo “concílio” pressupõe rostos, agendas, pautas, atas, deliberações e um local específico. Lamentável, mas até nisso, na contrafação do étimo, o cristão se deixou vencer.