Celebrando a "sorte" |
É
domingo, 11h. Cerca de 300 pessoas estão num anfiteatro no centro de Londres.
Não sobra uma poltrona vazia. Todos cantam músicas, silenciam o ambiente em
reflexão, e alguns relatam histórias de vida. A sacolinha do dinheiro aparece
rapidinho. “Sugerimos doações de 3 a 5 libras (R$ 12 a R$ 20), algo assim, ou o
que você puder. Obrigado pela generosidade”, diz Sanderson Jones, 32. A maioria
contribui. “Nossa missão é tentar ajudar as pessoas, celebrar o fato de
estarmos vivos”, lembra Jones. Todos aplaudem. Uma banda está no palco. Palmas
introduzem “I’m So Excited”, da banda pop
Pointer Sisters, sucesso nos anos 70 e 80. Jovens, casais, idosos e crianças
levantam da poltrona e cantam em coro. Depois, euforia com o hit do ano, “Get Lucky” (Daft Punk). Agora,
silêncio geral. Um neurocientista então explica o poder da mente, o fenômeno da
sinapse, como controlar sensações, sentimentos. Cabe a uma jovem contar seu
drama de superação após um dano cerebral.
Sanderson
Jones retorna ao microfone: “Pessoal, é o momento de refletir a sorte que temos em ter uma mente em
funcionamento.” Todos quietos, olhos fechados, cabeça baixa, por dois minutos. Agora,
a banda no palco levanta os fiéis com “Always on my Mind”, clássico eternizado
por Elvis Presley. Uma hora se passa, fim de culto, todos comungam biscoitos,
leite, café e chá.
Ninguém arrisca saudar o colega ao lado com “amém”, “glória a Deus”, “fique com Deus”, algo parecido. Ali, praticamente todos são ateus frequentando a Sunday Assembly (assembleia de domingo). É uma espécie de igreja ateísta criada há um ano em Londres e que já virou um pequeno fenômeno com ao menos 30 “filiais” nos Estados Unidos, Austrália e Canadá – o Brasil pode ganhar uma em breve. Segundo o site oficial, trata-se de “uma congregação sem Deus que celebra a vida”. Em Londres, tem a fama de “igreja dos ateus”.
A Folha acompanhou um culto da “matriz”,
em um auditório do Conway Hall, espaço de debates em Londres. O tema era “cérebro”.
Além
de pregador oficial, Sanderson Jones, um homem de cabelos e barbas compridos, é
também o fundador da Sunday Assembly. Oficialmente, sua profissão é de
comediante. Nascido em família religiosa, diz que perdeu a crença em Deus aos
10 anos, quando a mãe morreu de câncer. Questionado se ainda tem alguma crença,
faz um trocadilho em inglês: “I don’t believe in God, but in good” (não
acredito em Deus, mas no bem). A ideia de um culto ateísta (expressão de que
não gosta muito), conta, surgiu há seis anos, durante o Natal. “Tudo aquilo era
fantástico, as músicas, a comunidade, o fato de melhorar a si mesmo. Nós
devemos celebrar a vida, é o nosso foco, o sentimento de comunidade”, diz.
Em
seu site, a Sunday Assembly dá suas diretrizes: é um lugar para quem quer viver
melhor, ajudar, discutir o mundo e 100% de celebração só da vida. A meta de
Jones é atingir mil igrejas em uma década. Alguns brasileiros já o procuraram
para abrir filial no país, diz. “Devo ir ao Brasil em setembro, mas estamos em
fase de montagem, não posso dar detalhes.”
Não
há, em tese, requisito para que os frequentadores sejam ateus, desde que
entendam que ali não haverá menção a Deus – mas também não há pregação contra,
ao menos no culto presenciado pela Folha.
“Ninguém aqui pergunta sua religião”, diz o engenheiro Gerard Carlin, 31, que
atua como voluntário. Foi católico e hoje se declara “fortemente ateu”. Ele é
um dos que ajudam a contar as doações, cujo valor não revela. “É pouca coisa
que arrecadamos, só para pagar os custos, como locação, o piquenique depois, a
banda”, afirma.
“E
aí, gostou?”, pergunta a jornalista alemã Gabi Thesing, 21, frequentadora há
quatro meses dos cultos. “Já fui católica, mas hoje não acredito em Deus,
religiões. Acredito no poder das pessoas, da energia”, diz.
Estudiosos
em teologia no Reino Unido, como Nick Spencer, do centro de estudos Theos, tem
dito que a Sunday Assembly não chega a ser um fenômeno necessariamente novo e
se parece com movimentos antigos de pessoas que não creem em Deus, mas usam
ritos tradicionais religiosos em seus encontros privados.
O
empresário britânico Andrews Wett, 47, se diz um “adepto não praticante do
budismo”. Foi levado pela namorada ao culto. Opina sobre a grande quantidade de
jovens: “Isso mostra um pouco como as igrejas tradicionais têm perdido fiéis.”
Antes
de a reportagem deixar o local, alguns entrevistados se despediram com um “vejo
você da próxima vez”. Não deu para responder “se Deus quiser”.
Nota:
O fundador dessa “igreja ateia” só poderia mesmo ser um comediante... Celebrar
a “sorte” de ter uma mente que funciona é o cúmulo! Sorte?! Essa iniciativa
ajuda a evidenciar o fato de que o ser humano foi mesmo criado para adorar algo
ou alguém (na verdade, Alguém). Se tira Deus do caminho, a pessoa parte para
absurdos como a celebração da sorte e do bem (ou de estátuas e totens), embora,
sem um referencial absoluto (no caso, Deus), esse conceito de bem se torne bem “fluido”
e relativo. Frequentadores desse culto se dizem decepcionados com as “igrejas
tradicionais” (e elas devem prestar atenção a isso, sem dúvida), mas resolvem
frequentar um culto que tem praticamente o mesmo formato das reuniões das ditas
igrejas tradicionais: música, palestras, sociabilização e ofertas. Seria
saudade? Necessidade? Vazio? [MB]