“‘As
coisas encobertas são para o Senhor nosso Deus; porém, as reveladas são para
nós e para nossos filhos para sempre’ (Deuteronômio 29:29). Precisamente como
Deus realizou a obra da criação, jamais Ele o revelou ao homem; a ciência humana não pode pesquisar os
segredos do Altíssimo. Seu poder criador é tão incompreensível como a Sua
existência. Deus permitiu que uma inundação
de luz fosse derramada sobre o mundo, tanto nas ciências como nas artes; mas
quando professos cientistas tratam esses assuntos de um ponto de vista meramente humano, chegarão certamente a conclusões
errôneas. Pode ser inofensivo pesquisar além do que a Palavra de Deus revelou,
se nossas teorias não contradizem fatos encontrados nas Escrituras; mas aqueles
que deixam a Palavra de Deus e procuram explicar Suas obras criadas por meio de
princípios científicos, estão vagando sem mapa nem bússola em um oceano
desconhecido” (Ellen G. White, Patriarcas
a Profetas, p. 72).
Em
algumas ocasiões, vi o texto acima ser citado em um contexto em que se
procurava desacreditar resultados de pesquisas científicas, especialmente na
área de Cosmologia. No contexto original, essa
citação serve de advertência à insuficiência do intelecto humano diante da
grandeza de Deus e da natureza bem como a necessidade de fazermos uso da
verdadeira ciência (em oposição à ciência humana) para entendermos mais
profundamente tanto a natureza quanto a Bíblia.
Lido
fora de contexto, esse trecho passa praticamente a ideia oposta ao que o texto
como um todo nos diz em relação à verdadeira ciência. É importante dedicar
algum tempo a considerar esse contexto.
Trata-se do capítulo 9 do livro Patriarcas e Profetas, de Ellen White, cujo título é “A Semana Literal”.
O
capítulo inicia falando do sábado e de como ele
se originou na criação da Terra e foi preservado e trazido até nós através da
história bíblica. Menciona a lei dada no Sinai, que inclui o mandamento sobre o
sábado. Menciona a hipótese de que cada dia
da semana de Gênesis 1 seriam milhares de milhares de anos e como isso não faz
sentido diante da ordem para trabalharmos seis dias e descansarmos no sétimo
associada à semana da criação. Diz que essa ideia não está em conformidade com
o método com que o Criador trata de Suas criaturas.
“‘Pela
palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito
da Sua boca.’ ‘Porque falou, e tudo se fez; mandou, e logo tudo apareceu” (Salmo
33:6, 9). A Bíblia não admite longas eras em que a Terra vagarosamente evoluiu
do caos. De cada dia consecutivo da criação, declara o registro sagrado que
consistiu de tarde e manhã, como todos os outros dias que se seguiram. No final
de cada dia dá-se o resultado da obra do Criador” (p. 70).
Notemos
que o assunto aqui continua sendo a criação da Terra. A autora segue dizendo
que “pretendem geólogos achar prova na própria Terra de que ela é muitíssimo
mais velha do que ensina o registro mosaico... a Terra foi povoada muito tempo
antes da era referida no registro da criação... Tal raciocínio tem levado
muitos crentes professos na Bíblia a adotar a opinião de que os dias da criação
foram períodos vastos, indefinidos. Mas, fora da história bíblica, a geologia
nada pode provar”.
“Há
um esforço constante, feito com o fim de explicar a obra da criação como
resultado de causas naturais; e o raciocínio humano é aceito mesmo pelos
cristãos professos, em oposição aos claros fatos escriturísticos. Muitos há que
se opõem ao estudo das profecias, especialmente as de Daniel e Apocalipse,
declarando serem tão obscuras que não podemos entendê-las; contudo estas mesmas
pessoas recebem avidamente as suposições dos geólogos, em contradição com o
registro mosaico. Mas se aquilo que Deus revelou é tão difícil de entender, quão incoerente é aceitar meras
suposições com relação àquilo que Ele não revelou!”
Note
que o “esforço constante” mencionado pela autora não se refere à tentativa de
entender o que Deus faz à luz das leis conhecidas, mas à tentativa de eliminar
Deus do cenário, atribuindo a criação a causas naturais. Há quem confunda essas
duas abordagens como se fossem uma só e a mesma. É
nesse contexto que se insere o texto que mencionamos no início.
Iniciemos
observando as seguintes frases: “Precisamente como Deus realizou a obra da
criação, jamais Ele o revelou ao homem; a ciência humana não pode pesquisar os
segredos do Altíssimo. Seu poder criador é tão incompreensível como a Sua
existência.”
A
que obra de criação a autora se refere? Como já vimos, o assunto é a criação da
Terra (ou terraformação) em uma semana literal. O texto bíblico não diz como
Deus realizou todos aqueles feitos; apenas menciona passos e algumas definições
de termos como céus e terra para deixar bem claro que o contexto era local, não universal. Mas não há detalhes técnicos
sobre como exatamente Deus realizou a terraformação.
“A
ciência humana não pode pesquisar os segredos do Altíssimo.” Fora do contexto,
essa afirmação pode nos levar a crer que jamais deveríamos tentar utilizar a
ciência para estudar a criação (o criacionismo científico seria uma blasfêmia)
ou muito menos a Deus. Como harmonizar isso com todas as recomendações bíblicas
para estudarmos a Deus por meio da natureza, e especialmente com Romanos 1:19 e
20, que diz que o que se pode saber sobre Deus está escrito na natureza? Na
verdade, a própria Ellen White esclarece o assunto em outros textos e fornece
dicas no próprio capítulo que estamos discutindo. A chave está na expressão
“ciência humana”.
O
que ela chama de “ciência humana” é o que a maioria das pessoas hoje em dia
chama simplesmente de ciência, mas que praticamente nada tem a ver com o
conceito de ciência proposto pelos pioneiros da revolução científica. A chamada
“ciência humana” não foi responsável pela explosão de conhecimentos dos últimos
séculos, até porque ela apenas se vale de ideias que já eram utilizadas havia
milênios. O que fez a diferença na revolução científica foi o uso coerente de
métodos matemáticos para estudar a realidade, métodos esses aprendidos na
própria realidade e representados de várias maneiras por linguagens criadas
pela humanidade.
Voltando
aos escritos de Ellen White, ela associa a “ciência humana” à vã filosofia e à
falsamente chamada ciência. Realmente, o que vemos descrito em livros de
filosofia da ciência é uma construção humana baseada em correntes filosóficas.
Em
oposição à ciência humana, a autora fala da verdadeira ciência, cujo Autor é
Deus: “Aos olhos dos homens, a vã filosofia e a falsamente chamada ciência, são de mais valor do que a Palavra de
Deus” (Review and Herald, 8 de novembro
de 1892).
“Hoje os homens declaram que os ensinos de Cristo concernentes a Deus não podem ser provados pelas coisas do mundo natural, que a natureza não está em harmonia com as escrituras do Antigo e Novo Testamentos. Não existe essa suposta falta de harmonia entre a natureza e a ciência. A Palavra do Deus do Céu não está em harmonia com a ciência humana, mas em perfeito acordo com Sua própria ciência criada” (Olhando para o Alto, 21 de setembro [Meditações Matinais, 1983]).
“Deus é o autor da ciência. As pesquisas científicas abrem ao espírito vasto campo de ideias e informações, habilitando-nos a ver Deus em Suas obras criadas. A ignorância pode tentar apoiar o ceticismo, apelando para a ciência; em vez de o sustentar, porém, a verdadeira ciência contribui com novas provas da sabedoria e do poder de Deus. Devidamente compreendidas, a ciência e a Palavra escrita concordam entre si, lançando luz uma sobre a outra. Juntas, conduzem-nos para Deus, ensinando-nos algo das sábias e benéficas leis por que Ele opera” (Conselhos aos Pais, Professores e Estudantes, p. 426).
“Há
poder no conhecimento de ciências de toda a espécie, e é desígnio de Deus que a
ciência avançada seja ensinada em
nossas escolas como preparação para a obra que há de preceder as cenas finais
da história terrestre” (Fundamentos da
Educação Cristã, p. 186).
“Depois da Bíblia, a natureza deve ser o nosso maior livro de texto” (Conselhos Sobre Educação, p. 171).
“Ao mesmo tempo em que a Bíblia deve ter o primeiro lugar na educação das crianças e jovens, o livro da natureza ocupa o lugar imediato em importância. As obras criadas de Deus testificam de Seu amor e poder. Ele trouxe à existência o mundo, juntamente com tudo que nele se contém” (Exaltai-O Como Criador, 22 de fevereiro [Meditações Matinais, 1992]).
Sendo
que é perigoso confiar na ciência humana,
e sendo que somos admoestados a ler o livro
da natureza como sendo o mais importante depois da Bíblia, de que forma
faremos esse estudo? Como vimos, Deus nos disponibilizou a verdadeira ciência para isso. Os mesmos catalisadores que levaram à
redescoberta de ensinamentos Bíblicos no fim da Idade Média também levaram à
revolução científica.
Continuemos
a observar mais alguns itens do capítulo 9 de Patriarcas e Profetas:
“Céticos
que leem a Bíblia com o fim de cavilar podem, mediante uma compreensão
imperfeita, quer da ciência quer da revelação, pretender achar contradições
entre elas; mas, corretamente entendidas, estão em perfeita harmonia.” Notemos
que uma compreensão imperfeita da ciência ou da Bíblia faz parecer que há
contradições entre uma e outra. De que ciência ela fala aqui? Notemos que a
ciência humana é uma forma de entender as coisas (entendimento) e não faz
sentido dizer que os que possuem essa forma de entendimento não a entendem. A
ciência mencionada aqui, muitas vezes incompreendida mas que está em harmonia
com a Bíblia, é a verdadeira (conhecimento em oposição a entendimento).
“Na
Palavra de Deus surgem muitas perguntas que os mais profundos sábios jamais
poderão responder. A atenção é chamada para esses assuntos, para nos mostrar,
mesmo entre as coisas comuns da vida diária, quanta coisa há que mentes
finitas, com toda a sua vangloriada sabedoria, jamais poderão compreender
amplamente.” Isso tem acontecido em relação à verdadeira ciência também. Nos
últimos 200 anos, métodos matemáticos têm revelado à humanidade detalhes que
entram em conflito com a intuição comum e até com “verdades filosóficas” tidas
por confiáveis durante milênios. Os testes mostraram que a intuição e aquelas
“verdades filosóficas” é que estavam erradas. Se tomarmos a Mecânica Quântica
como exemplo, podemos notar o quão simples ela é matematicamente, mas ao mesmo
tempo quão insondável à filosofia humana ela tem-se mostrado.
Quando
confundimos a ciência humana com a ciência verdadeira, tratando ambas como se
fossem invenções humanas, o texto do parágrafo anterior, assim como o inicial
deste artigo, nos dão a ideia de que simplesmente não devemos confiar na
ciência, o que por sua vez nos induz a confiar apenas nas impressões que temos
ao ler o texto Bíblico. Mas o que temos nesse capítulo é exatamente uma
advertência contra confiar em impressões
e intuições. A verdadeira ciência é
uma caixa de ferramentas que serve tanto para o estudo da Bíblia quanto da
natureza, protegendo-nos contra essa perigosa forma de pensar baseada apenas na
intuição humana, em última instância.
Na
sequência do capítulo, encontramos algo muito interessante e que ilustra bem o
tipo de inversão de sentido que acontece quando descontextualizamos textos
nessa área. Notemos os dois parágrafos a seguir:
“Contudo,
homens de ciência julgam poder compreender a sabedoria de Deus, aquilo que Ele
fez ou pode fazer. A ideia de que Ele é restrito pelas Suas próprias leis,
prevalece largamente.” Muitos leem isso e concluem que Deus viola as próprias
leis. Sendo assim, é inútil tentar utilizar leis físicas para saber mais sobre
milagres ou sobre a criação. Sim, essas coisas são inacessíveis à ciência humana, mas não à verdadeira.
Os
naturalistas (proponentes da ciência humana) “não creem no sobrenatural, não
compreendendo as leis de Deus, ou o Seu poder infinito para executar Sua
vontade por meio delas”. É interessante notar que o destaque aqui é o de que
Deus tem poder infinito para executar Sua vontade por meio das leis físicas.
Também é mencionado que no naturalismo não há compreensão das leis de Deus.
Aliás, a totalidade das leis de Deus não é compreensível por seres finitos,
pois essas leis se desdobram infinitamente. É importante notar, porém, que incompreensível não é sinônimo de ininteligível. Podemos entender cada
lei, mas não temos como sequer conhecer todas, embora conheçamos seu princípio
gerador.
“Muitos
ensinam que a matéria possui força vital: que certas propriedades são
comunicadas à matéria, e que então fica ela a agir por meio de sua própria
energia inerente; e que as operações da natureza são dirigidas de acordo com
leis fixas, nas quais o próprio Deus não pode interferir. Isto é ciência falsa, e não é apoiado pela
Palavra de Deus. A natureza é serva de seu Criador. Deus não anula Suas leis, nem age contrariamente a elas; mas está
continuamente a empregá-las como Seus instrumentos. A natureza testifica de
uma inteligência, de uma presença, de uma energia ativa, que opera em suas leis
e por meio das mesmas leis.”
Notemos
como esse trecho combate vários erros opostos, mas igualmente perigosos: o de
que as leis físicas limitam a Deus por um lado e a ideia de que, como Deus é
superior às leis físicas, Ele as violaria de vez em quando.
Como
mencionamos de passagem antes, essa questão é semelhante aos dois erros
aparentemente opostos mas igualmente perigosos que costumam ser cometidos no
contexto do texto inicial. Um deles é confiar na sabedoria humana, seja na
interpretação da Bíblia, seja na interpretação da natureza. O outro é achar que
a ciência é algo inadequado para estudar as coisas de Deus e a criação. Na
verdade, esses dois erros são instâncias de um mesmo problema conceitual: a
confiança na intuição humana; em um dos casos essa confiança é depositada nas
impressões que alguns têm ao estudar a Bíblia e na ideia de que essas
impressões são mais seguras do que estudos verdadeiramente científicos sobre a
natureza; no outro caso, confia-se na intuição humana que, com alguma
organização, passa a ser chamada (falsamente) de ciência e utilizada para
contradizer a Bíblia.
“Deus
é o fundamento de todas as coisas. Toda verdadeira ciência está em harmonia com
Suas obras; toda verdadeira educação conduz à obediência ao Seu governo. A
ciência desvenda novas maravilhas à nossa vista; faz altos voos, e explora
novas profundidades; mas nada traz de suas pesquisas que esteja em conflito com
a revelação divina. A ignorância pode procurar apoiar opiniões falsas a
respeito de Deus apelando para a ciência; mas o livro da natureza e a Palavra
escrita derramam luz um sobre o outro. Somos assim levados a adorar o Criador, e a depositar uma confiança inteligente
em Sua Palavra.”
Se
a verdadeira ciência nunca traz algo que esteja em conflito com a revelação
divina, não faz sentido que a temamos. A advertência é contra confiar na ciência humana, não na ciência.
“Nenhuma
mente finita pode compreender completamente a existência, o poder, a sabedoria,
ou as obras do Ser infinito.” Compreender completamente é um pleonasmo, mas é
útil para enfatizar o que está sendo explicado. Nem Deus nem Suas leis são
compreensíveis, mas isso é diferente de ser inteligível. “Os homens podem estar
sempre a pesquisar, sempre a aprender, e ainda há, para além, o infinito.” Se
essas coisas fossem ininteligíveis, jamais aprenderíamos sobre elas.
“Aqueles
que tomam a Palavra escrita como seu conselheiro encontrarão na ciência um auxílio
para compreender a Deus.” Aqui, a palavra compreender é usada no sentido de
entender. Então é possível entender a Deus e a ciência é um auxílio para isso,
ao contrário do que parecia no texto da abertura deste artigo.
“As
Suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o Seu eterno poder,
como a Sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão
criadas” (Romanos 1:20).
(Eduardo Lütz é físico e engenheiro
de software)