Injustiça com as próprias mãos |
Caminhamos
para tempos cada vez mais sombrios e dantescos. Barbáries e comportamentos
estarrecedores aparecem aqui e ali, no mundo inteiro, revelando a marca da
natureza perversa do homem. Talvez seja preferível viver no “reino dos macacos”
do que na sociedade dos humanos - estes sempre surpreendentemente cruéis. Recentemente,
numa livraria, deparei-me com A parte
obscura de nós mesmos – uma história dos perversos, obra escrita pela
conhecida historiadora da Psicanálise, a francesa Elisabeth Roudinesco. O livro
constitui uma pequena amostra do que é a natureza humana: um reino obscuro de
múltiplas crueldades. Como “humanos” (sim, entre aspas) nossa situação é
realmente vergonhosa e doentia. Basta um atento olhar para dentro de nós mesmos
para perceber que “desde a planta dos pés até o alto da cabeça não existe nada
são; somente machucaduras, vergões e ferimentos sangrando que não foram limpos
nem atados” (Isaías 1:6). Pessoalmente, tenho sido acometido de profundo
espanto por causa da condição da sociedade contemporânea: enferma, enlouquecida,
fraquejada, decaída. Pergunto-me: Haverá esperança para nós?
Não
sou admirador de Renato Russo, mas o fragmento de uma de suas canções, nesse
contexto, cabe bem: “Nos perderemos entre monstros da nossa própria criação /
Serão noites inteiras talvez por medo da escuridão / Ficaremos acordados
imaginando alguma solução / Pra que esse nosso egoísmo não destrua nosso
coração. / Será só imaginação? / Será que nada vai acontecer? / Será que é tudo
isso em vão? / Será que vamos conseguir vencer?” Será?
Horizontalmente
não vejo saída real. Sou cético no que tange à esperança humanista.
Verticalmente? Bom, é uma questão de fé. Ainda a tenho para poder suportar
este cenário de angústia social cada vez mais crescente e escuro. Chorei
diante da triste imagem reveladora de nosso lado desumano e, por que não dizer,
demoníaco. Perante quadro tão infeliz, impotência e frustração é o que, temporariamente,
sinto; além de dó. Tenho pena de todos nós, sejamos os agredidos ou os
agressores, e espero que as vozes justas e misericordiosas e as boas mãos
deste mundo se levantem num esforço para fazer retroceder a onda de violência
que arrasa nossas sociedades. Creio na vitória do Bem, ainda que ele saia
machucado pelo mal.
(Frank de Souza
Mangabeira, membro da Igreja Adventista do Bairro Siqueira Campos, Aracaju, SE; servidor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe)
Nota 1:
“É com muita tristeza que deixo meus sentimentos de pêsames à família da
Fabiane Maria de Jesus, esposa e mãe de dois filhos, vítima de um ato cruel e
desumano de linchamento em via pública, o que levou à sua morte. É lamentável
que fatos como estes aconteçam nos dias atuais e em nossa cidade. Eu,
particularmente, a conhecia da igreja, éramos da mesma comunidade e morávamos
no mesmo bairro, no Morrinhos. A Fabiane era uma boa moça, sofria de problemas
psiquiátricos e passou por um problema de depressão pós-parto. Ela participou
do grupo de jovens católicos e todos que a conheceram sabem que ela seria
incapaz fazer mal a alguém.” Foi assim que a prefeita do Guarujá, Maria
Antonieta de Brito, descreveu a jovem Fabiane. Ambas fizeram parte do Grupo de
Jovens da Igreja de São João Batista, no bairro em que moravam. Fabiane morreu
aos 33 anos, depois de ser xingada, humilhada e torturada pelas ruas de
Morrinhos, em Guarujá. Acusada de sequestrar e de praticar atos de magia negra
contra crianças, Fabiane foi encurralada no último sábado em uma rua do bairro e
morta por um grupo de pessoas que lhe desferiu socos no rosto, marretadas na
cabeça e pontapés. Já inerte, o corpo foi jogado em uma vala.
Nota 2:
Fabiane havia voltado para casa para pegar uma Bíblia, quando foi confundida
com a sequestradora praticante de magia negra. Ao ver a foto acima, pude
identificar a edição da Bíblia Ave Maria, no chão. Fui eu quem desenhou a capa
dessa edição, quando tinha 18 anos de idade. Espero que Fabiane tenha
encontrado esperança naquelas páginas. [MB]