Mudança radical de vida |
A
fila já vai grande às 19h50. Algumas centenas de jovens, a maioria aparentando
vinte e poucos anos, vão se amontoando em frente aos portões fechados do
principal auditório da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Eles falam alto.
Uns conversam em inglês. “I miss you so much!” Quem tem pulseirinha de acesso
restrito não precisa esperar a abertura oficial. Convencemos o atarefado estafe
a liberar nossa entrada. No lado de dentro a banda passa o som. Tira grave,
sobe agudo, ei, som, ei, som. “Alguém quer alguma coisa?”, grita o técnico de
áudio de cima do seu poleiro. “Quero um café!”, brinca Rodolfo Abrantes. Ele
está no centro do palco empunhando a guitarra. Ao seu redor, sua banda,
cortinas vermelhas, cem lâmpadas em forma de velas e três pessoas orando num
canto. “A gente vai fazer uma parte da adoração, é uma parte do culto”, explica
Rodolfo. Ele é um missionário, alguém que, segundo as tradições evangélicas,
passa a mensagem de Deus. “A carta não é a minha, eu sou o carteiro”, diz. Aos
41 anos, ele recusa o título de artista que carregou até 2001, ano em que
deixou os Raimundos. “Eu vim de uma cidade projetada, minha família toda tem
médicos, era tudo planejado; e eu não queria aquilo pra mim”, conta. Rebento da
segunda geração roqueira do Distrito Federal, o moleque Rodolfo viu na música a
chance de sair do plano piloto a ele imposto. Ao lado de Digão, fundou os
Raimundos em 1987, e em 1994 rumava ao sucesso com o primeiro álbum.
Em
pouco tempo ele deixou de ser fã de rockstars
para se tornar um deles. Rodava o Brasil na rotina avião-hotel-palco-hotel-avião.
Ao lado de bandas como Planet Hemp e Charlie Brown Jr, os Raimundos tocaram o
último acorde do rock brasileiro de
grandes proporções. Lotavam casas de show,
vendiam quilos de CDs e arrepiavam os ouvidos mais carolas com a mistura de
riffs velozes e distorcidos, vocabulário calango e histórias de sexo oral,
escatologia, erva e outras peculiaridades.
O
sucesso aumentava e Rodolfo ficava cada vez mais junkie. Maconha era mato. “Eu fumava um e já estava pensando no
próximo, cheguei a cheirar e tomava ácido pra caramba”, conta. Para ele, o
ápice da fama coincidiu com o fundo do poço. “Minha saúde destruída, perdendo
peso, cheio de caroço espalhado pelo corpo: eu me sentia morrendo”.
Rodolfo
decidiu que daria fim àquilo logo após a gravação do aclamado álbum MTV Ao
Vivo, em junho de 2001. Ele se convertera no começo daquele ano, motivado, num
primeiro momento, por Alexandra (então namorada e atual esposa). “Nosso
relacionamento estava indo por água abaixo.” A convite dela, evangelistas da
periferia de São Paulo foram à sua casa. Anos depois de entrar num puteiro em
João Pessoa, o músico encontrava seu Deus.
Rodolfo
conta sua história e sua crença com precisão litúrgica. Embora sempre leia a
Bíblia, não menciona passagens com proselitismo pastoreiro. Fala de forma
complacente. Sua prosódia em nada lembra os pregadores ufanistas, mas tampouco
resgata a língua frenética de músicas como “Nêga Jurema”, em que cuspia
duzentas e três palavras em apenas dois minutos.
“Eu
tenho 100% de arrependimento”, diz ele sobre suas letras na época dos
Raimundos. As dezenas de composições feitas durante esse tempo garantem parte
de seu orçamento por meio dos direitos autorais, mas ele não toca mais nenhuma
dessas músicas. Atualmente, a maior parte das suas contas é paga pelos seus
álbuns de cunho evangélico, assinados com a sigla RABT, e pelas apresentações
que faz pelo país. Nesse caso, o pagamento vem como oferta – uma das formas de
remuneração instituídas na Bíblia, segundo ele. “Eu saio da minha casa e posso
não receber nada”, afirma.
Assim
como não enxerga verdade em alguns pastores – “tem pilantra se passando por
pastor” –, Rodolfo também não acredita
no endinheirado mercado gospel. “Eu não consigo ver Jesus nesse tipo de show porque o povo está aplaudindo o
cara que está tocando, e a adoração não serve pra ninguém me aplaudir”, diz
ele em meio ao barulho que antecede o culto. [...]
Rodolfo
mora em Balneário Camboriú e, quando dá tempo, surfa na praia logo em frente a
sua casa. Cair na água é um dos poucos hábitos que mantem desde a adolescência.
Mas sua prioridade é sua missão terrena. Ele não acha que corre o risco de ter
uma overdose. Afinal, Deus é veneno? “Não, porque ele não é desse mundo.”
(Trip, via Pavablog)