Quando o horizonte desaparece |
“A
crise de sentido não é uma crise entre outras, mas é a crise fundamental, que
atravessa todas as outras crises e as condiciona. Trata-se de uma crise
qualitativamente diferente das outras, e isso por vários motivos. Primeiro, porque
mexe com a vida como um todo e não com uma parte dela, qual seja, a vida econômica,
a vida política, a vida emocional, etc. Segundo, porque essa crise não diz respeito
apenas ao significado ordinário e direto das coisas, mas, sim, ao sentido último
de cada coisa. Para que, no fim das contas, existe o trabalho, a técnica, a política,
a arte, a justiça, o amor? Em terceiro lugar, porque a crise de sentido não
concerne a essa ou àquela pessoa ou a tal ou tal categoria social, mas a
todos e a cada um dos seres humanos, sem exceção. Cada um tem que se haver
com o sentido de sua vida e de sua morte, de seu agir e de seu destino
definitivo. Apesar da sua decantada autonomia, os grandes valores instituídos,
como família, trabalho, ciência e política, estão, eles também, submetidos ao
processo niilista: eles perdem valor.
“Essa
é a experiência fundamental da cultura imperante. Mas de onde provém esse pathos, esse sentimento de entropia
axiológica e mesmo ontológica? Da desvinculação desses valores de seu princípio
mais originário por obra dessa mesma cultura. Esta, achando – supremo engodo! –
que Deus lhe roubava sentido e buscando, em contrapartida, fundar a vida em si
mesma, acabou por esvaziar a própria vida. O resultado era logicamente
esperado: quando se apaga o sol, vem a escuridão; quando a fonte seca, o rio
morre; quando o horizonte desaparece, o viajante perde a direção. A vida então
se torna um tédio sem remédio, contendo apenas intervalos de sentido. Sem Deus,
subsistem ilhas de sentido num mar de absurdo. E, contudo, o mar continua subindo
e ameaça submergir também as ilhas.
“Chamar
de ‘niilismo’ a crise maior de nosso tempo foi mérito de Nietzsche. Trata-se,
contudo, de um mérito relativo, pois [...] não é toda a cultura atual que é
niilista, mas apenas a dominante. Mas, também, Nietzsche nunca pretendeu
que as maiorias pudessem viver sob o signo da ‘morte de Deus’: só uma
aristocracia teria a energia para isso. Outro mérito de Nietzsche foi ter visto
na figura de Deus o sentido supremo e fundamento de todos os outros sentidos,
como o ético e o metafísico. Mas tal mérito vira demérito na medida em que
aquele pensador interpretou a equivalência Deus = Sentido de um modo totalmente
enviesado: Deus seria o pseudossentido, a máscara do Nada. Assim, só caindo
essa máscara, com a ‘morte de Deus’, ficaria aberto o caminho para o sentido autêntico,
que chamou ‘vontade de potência’ e ‘eterno retorno’. [...]
“Notável
exceção constitui a interpretação de Heidegger, que põe no respeito e na escuta
do Ser o princípio da superação do nietzscheísmo, sem que, contudo, resolva a
questão do niilismo em geral, por ter permanecido caudatário do imanentismo.
Ademais, Heidegger quis superar o niilismo no plano do puro pensar. Mas para
vencer o niilismo não basta filosofia, por mais misticismo ontológico que nela
se injete. A ‘Seinsphilosophia’ heideggeriana só pode vencer a Filosofia do
Nada, não o próprio Nada, tal como se manifesta na experiência concreta da
finitude, vivida na culpa, na dor e na morte. Por fim, para superar o Nada não
basta o Ser abstrato e formal do pensamento heideggeriano, por mais ontológico
que se queira. Precisa-se do Ser realmente existente, o ‘Ipsum Esse Subsistens’,
pois só nEle pode haver salvação, que é, em verdade, o nome religioso do
sentido.”
(O Livro do Sentido, v.
I, p. 137, 138; colaboração de Frank de Souza Mangabeira)