Quantos mais? |
“Auschwitz,
Treblinka, Sobibor, Belzec, Chelmnor, Jasenovac, Maidanec? Escravos
vítimas de longas caminhadas pelas savanas cruzando a África até Zanzibar? Pelo
Atlântico, em navios negreiros ingleses, portugueses, espanhóis? Coisas de um
passado sombrio? (‘E ri-se a orquestra irônica, estridente / e da ronda
fantástica a serpente / faz doidas espirais. / Qual num sonho dantesco as
sombras voam... / Gritos, ais, maldições, preces ressoam. / E ri-se Satanás!’) Não
é nada disso. É nosso alegre, festivo, contemporâneo, civilizado mundo
ocidental.”
O
texto acima foi escrito pelo meu ex-professor de jornalismo Nilson Lage. Comunicador
experiente, nasceu em 1936, trabalhou em vários jornais, foi professor
universitário na UFRJ e na UFSC e é doutor em linguística. Certamente já viu
muita coisa na vida e já teve que cobrir e divulgar informações tristes e desconcertantes.
Mas fica claro nas palavras dele que a foto do garotinho morto numa praia da
Turquia o chocou, assim como chocou todo mundo que a viu. Pai de três filhos,
foi difícil para mim segurar as lágrimas ao ver a cena.
A
imagem chocante virou símbolo da crise migratória que já matou milhares de
pessoas do Oriente Médio e da África. Pessoas acuadas, que tentam chegar à
Europa para escapar de guerras, de perseguições e da pobreza. O corpo do menino
apareceu ontem, depois que duas embarcações com imigrantes naufragaram. Pelo
menos nove sírios morreram, segundo a agência AFP. As duas embarcações haviam
partido de Bodrum e tentavam chegar à ilha grega de Kos.
O
jornal britânico Independent diz que
as fotos são “um forte lembrete de que, enquanto os líderes europeus
progressivamente tentam impedir refugiados e imigrantes de se acomodarem no
continente, mais e mais refugiados estão morrendo em seu desespero para escapar
da perseguição e alcançar a segurança”.
O
mundo enfrenta a pior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial,
segundo organizações como a Anistia Internacional e a Comissão Europeia. Mais
de 350 mil imigrantes atravessaram o Mediterrâneo desde janeiro deste ano e
mais de 2.600 pessoas morreram no mar quando tentavam chegar à Europa.
Este
é o mundo em que vivemos como verdadeiros refugiados. Milênios de guerras, dor,
sofrimento e injustiças insistem em não ficar apenas nos livros de história.
Exatamente neste momento milhares de pessoas estão com medo, com fome, com
frio, com sonhos despedaçados. Enquanto uma parcela pequena dos habitantes
deste planeta falido se refestela com recursos quase infindáveis, multidões
nadam, nadam, nadam e acabam morrendo na praia da indiferença.
Quantas
vidas mais serão ceifadas neste grande conflito que envolve o mundo? Quantas
criancinhas terão sua história interrompida por um naufrágio ou uma bala perdida?
Satanás realmente
deve estar rindo de tudo isso. Mas vai rir por pouco tempo!
Michelson Borges
O pequeno anjo branco
Nove entre dez jornalistas sentiram-se mal ao publicar a imagem do garotinho sírio morto no litoral turco. Sabíamos, todos nós, os argumentos éticos contrários. Mesmo assim a imagem foi para a rotatória, para o site e para a tevê.
Se eu fosse pensar num editor celestial, em alguém que decidisse quais “notícias publicar” na página em branco da vida real, diria que a decisão de colocar o garotinho naquela praia também foi bem difícil para Ele. Eu não creio num Deus-editor. Mas se cresse, apostaria que Ele titubeou na hora de dar o destaque de sua capa para o pequeno sírio morto.
Mas não havia outro jeito. O mesmo Mar Mediterrâneo já havia engolido milhares de corpos e entregou centenas nas praias que o cercam. E, como resposta, os arrogantes donos do Euro levantaram muros, colocaram mais guardas, mandaram suas marinhas expulsarem, ainda em alto mar, os desesperados refugiados. Mesmo eles apinhados em embarcações velhas já à beira do naufrágio. Talvez algum imigrante africano ou sírio tenha pensado que os homens de bem, bons cristãos que eram, jamais os deixariam morrer sem socorro. Quantos missionários já haviam visitado o sofrido continente africano, e as instáveis regiões asiáticas, com bíblias nas mãos e olhares acolhedores? Estavam enganados.
A xenofobia explodiu no mundo inteiro. Os milhares de refugiados não interromperam sequer as partidas de golfe, assim como os ofegantes sudaneses não atrapalharam a praia dos banhistas nas Ilhas Canárias, arquipélago espanhol. A França fechou suas fronteiras e apelidou os campos de refugiados de “a nova floresta”.
O primeiro ministro italiano chegou a sugerir “afundar os barcos”. Até aqui no Brasil os haitianos, cubanos e bolivianos foram tratados com um asco absurdo. E, enquanto os dias passavam, reuniões infrutíferas eram agendadas em palácios e governantes fingiam algum tipo de incômodo, milhares morriam e ninguém dava muita bola. Era só culpa do tráfico de pessoas, de uma meia dúzia de vilões africanos que faturavam milhões de dólares com a tragédia alheia. Ficávamos felizes e tranquilos. Tínhamos as vítimas de um lado e os vilões do outro. Tudo provado no noticiário. Daí o tal “Editor celestial” resolve colocar o menino na praia para o mundo inteiro ver. Um menino branco e de botinhas. Podia ser meu filho. Podia ser o seu. Ele estava arrumadinho, pronto para o passeio de barco. Iria visitar a Grécia. A cena é forte, mas se não fosse assim, quem olharia? E o mundo inteiro olhou. Agora já não dá mais para fazer de conta que eles não existem.
Nove entre dez jornalistas sentiram-se mal ao publicar a imagem do garotinho sírio morto no litoral turco. Sabíamos, todos nós, os argumentos éticos contrários. Mesmo assim a imagem foi para a rotatória, para o site e para a tevê.
Se eu fosse pensar num editor celestial, em alguém que decidisse quais “notícias publicar” na página em branco da vida real, diria que a decisão de colocar o garotinho naquela praia também foi bem difícil para Ele. Eu não creio num Deus-editor. Mas se cresse, apostaria que Ele titubeou na hora de dar o destaque de sua capa para o pequeno sírio morto.
Mas não havia outro jeito. O mesmo Mar Mediterrâneo já havia engolido milhares de corpos e entregou centenas nas praias que o cercam. E, como resposta, os arrogantes donos do Euro levantaram muros, colocaram mais guardas, mandaram suas marinhas expulsarem, ainda em alto mar, os desesperados refugiados. Mesmo eles apinhados em embarcações velhas já à beira do naufrágio. Talvez algum imigrante africano ou sírio tenha pensado que os homens de bem, bons cristãos que eram, jamais os deixariam morrer sem socorro. Quantos missionários já haviam visitado o sofrido continente africano, e as instáveis regiões asiáticas, com bíblias nas mãos e olhares acolhedores? Estavam enganados.
A xenofobia explodiu no mundo inteiro. Os milhares de refugiados não interromperam sequer as partidas de golfe, assim como os ofegantes sudaneses não atrapalharam a praia dos banhistas nas Ilhas Canárias, arquipélago espanhol. A França fechou suas fronteiras e apelidou os campos de refugiados de “a nova floresta”.
O primeiro ministro italiano chegou a sugerir “afundar os barcos”. Até aqui no Brasil os haitianos, cubanos e bolivianos foram tratados com um asco absurdo. E, enquanto os dias passavam, reuniões infrutíferas eram agendadas em palácios e governantes fingiam algum tipo de incômodo, milhares morriam e ninguém dava muita bola. Era só culpa do tráfico de pessoas, de uma meia dúzia de vilões africanos que faturavam milhões de dólares com a tragédia alheia. Ficávamos felizes e tranquilos. Tínhamos as vítimas de um lado e os vilões do outro. Tudo provado no noticiário. Daí o tal “Editor celestial” resolve colocar o menino na praia para o mundo inteiro ver. Um menino branco e de botinhas. Podia ser meu filho. Podia ser o seu. Ele estava arrumadinho, pronto para o passeio de barco. Iria visitar a Grécia. A cena é forte, mas se não fosse assim, quem olharia? E o mundo inteiro olhou. Agora já não dá mais para fazer de conta que eles não existem.
(Texto do colega jornalista Marcelo Santos)