A falsa deusa do sexo falso |
“De
relação interpessoal, o sexo se torna cada vez mais mero intercurso corporal. Perde
sua força simbólica de remeter à comunhão de pessoas e destinos, para se limitar
ao efêmero estremecimento psicofísico do espasmo. A convivência a dois se baseia
mais no sentimento que no consentimento. É relação ‘pura’, enquanto reduzida à
gratificação emocional. [...] Ora, levando a lógica do sexismo às suas consequências
extremas, eis a miséria a que chega a sexualidade, em todos os seus aspectos: o
corpo se reduz à mera ‘máquina desejante’; a alma, a suporte das pulsões; o
romance, à tática da sedução; as carícias, à preparação para o intercurso; a
pessoa, a parceiro sexual ou a corpo-objeto; a relação, à conjunção de órgãos;
e o casamento, ao consenso para a cessão recíproca dos corpos em função do prazer.
Caricatura? Mas hoje não nos aproximamos perigosamente dela?
“O
pós-moderno inventou o amor plástico, fluido. É o chamado ‘amor líquido’. As novelas
refletem e ao mesmo tempo difundem o modelo de relações sem vínculo. É um amor
avulso, sem consistência, segundo a metáfora popular do ‘anel de vidro’, traduzida
pela expressão hoje corrente: ‘eterno enquanto dura’. [...] Através de teorias
psicológicas e práticas libertárias várias, despoja-se o sexo de sua misteriosidade
natural, com o fim de quebrar todos os tabus, legítimos ou não, tornando-o,
assim, mais disponível. Consequentemente, perde-se também a ideia de pudor,
como guarda e proteção ético-psicológica da própria intimidade. É o que se vê hoje
na licenciosidade da linguagem, no uso das roupas ‘sexy’ e nas posturas socioafetivas
‘liberadas’. O comportamento homem-mulher, especialmente na mídia, bordeja
frequentemente a esfera do proibido, forçando seus limites por uma tática sutil
de transgressão. Isso tudo levou a falar em ‘sociedade impudente’. A folha de parreira
teria mudado de lugar; o que ela cobre agora não são as partes pudendas, mas o
rosto da mulher ou do homem. Hoje, o prazer sexual não é só permitido, mas ordenado:
você tem que gozar! Daí expressões, hoje não raras, como ‘curta seu amor’, ‘beije
o quanto puder’, ‘goze de todas as maneiras’, ‘aproveite todas as ocasiões’.
“Deixar
escapar uma oportunidade de gozo desperta pesar, quase culpa: ‘Que pena, devia
ter aproveitado.’ O prazer tornou-se um imperativo tirânico. Outrora havia culpa
por transgredir um interdito sexual; hoje, ao contrário, há culpa por não transgredi-lo,
perdendo assim o acréscimo de prazer que a infração confere. Gozar é preciso,
mesmo à custa da simulação e da mentira. Há, certamente, limites para o sexo,
mas se restringem ao consentimento e à prevenção das consequências negativas: doença
(aids, DST), gravidez e outros ‘incômodos’ de tipo psicológico, social, quando
não policial. É a versão moderna da antiga moral dos velhacos: ‘Si non caste, caute’ (se não puder ser
casto, seja pelo menos cauteloso). [...]
“Por
que a hipersexualização da vida hoje? No fundo, é por falta de valores mais
altos, que possam ‘encher a vida de sentido’. De fato, com o fim de reencantar
a vida, que se tornou monótona e maçante, no lugar das ideologias de ontem,
recorre-se a novos derivativos, entre os quais avulta o sexo. Começa-se, assim,
por erotizar o cotidiano para, depois, sexualizar as relações. Mas, como todo
substituto acaba desmascarado, o tédio e o absurdo da vida retornam, encostando
o homem novamente contra o muro do absurdo.
“Em
verdade, não há sexo, quer carnal, quer emocional, que possa preencher o vazio
hiante de sentido. A resposta erótico-sexual não está à altura da pergunta
existencial-espiritual. Daí a frustração que produz toda sexualidade que se pretenda
plenificante. Forçar artificialmente os limites do prazer é aproximar-se do
abismo. [...] Não que o sexo não possa dar certo sentido à vida. Mas tal
sentido é sempre relativo e precário. Nunca será um sentido consistente, como o
que dá a ética, e menos ainda um sentido transcendente, como o que oferece a
fé. De resto, o sexo mesmo só ganha sentido no horizonte do eros e este, no
horizonte do ágape.”
(O Livro do Sentido, p. 243-247; colaboração:
Frank de Souza Mangabeira)