Enxergando além do horizonte |
“Quem
faz metafísica não se contenta em observar a sequência dos fenômenos e em
calcular com exatidão a sua sucessão. Essa é uma tarefa que cabe aos
cientistas. O metafísico considera os fenômenos não só sob o aspecto
horizontal, mas vertical, e aí descobre a radical insuficiência deles (ao passo
que na ordem horizontal parece estar tudo no lugar e funcionando regularmente).
Percebe que, ainda que os fenômenos estejam ali e se imponham à nossa atenção,
são afetados por extrema caducidade. Têm o ser, mas não o possuem de direito;
têm-no provisoriamente, quase que casualmente. Hoje existem, mas em breve não
existirão mais. Estão aí, mas não são capazes de oferecer uma justificação
satisfatória do próprio ser. Sua presença impõe-se à nossa constatação, mas é uma
presença transitória, passível de a qualquer modo desaparecer, e isso vale não
só para uma mosca, uma flor, um gato, uma pessoa querida, mas, em princípio,
também para a totalidade deste mundo: o mundo é intrínseca e radicalmente
contingente; ‘o mundo não é tudo’, ‘o mundo é limitado’, como afirma
Wittgenstein. [...]
“A
ciência considera o contingente como puro fato, como um dado objetivo, como um
fenômeno exaustivo em si mesmo; não o trata (como faz a metafísica) como uma
coisa inadequada, transitória, precária, insuficiente, carente de fundamento em
si. A ciência se contenta em observar e calcular o contingente; não se pergunta
sobre sua contingência nem procura explicá-la ou ‘justificá-la’. A ciência
observa o grande espetáculo da natureza com o escopo de descobrir a admirável
trama das suas leis, de analisar distintamente os vários elementos que a
compõem, de reconstruir fielmente a sua longuíssima história. Mas o espetáculo
da natureza a ciência o observa, o admira e o estuda tal como ele se manifesta
imediatamente, como se fosse completo em si mesmo.
“A
atitude do cientista diante da natureza é semelhante à do espectador em face a
uma obra teatral: basta-lhe observar e seguir com atenção todas as personagens
que entram em cena; ouve com prazer e admiração o texto falado, procura
entender a trama. Terminado o espetáculo e fechadas as cortinas, para ele
terminou a história; não lhe interessa o que acontece em seguida nos
bastidores, nem se o enredo retratava algo acontecido em alguma parte do mundo.
Para o cientista, o espetáculo do mundo é, como para o espectador de uma obra
teatral, tudo e só aquilo que acontece no palco.
“A
atitude do metafísico diante do mundo é totalmente diferente: ele o vê como
algo contingente, à beira do abismo do nada, e se pergunta sobre o porquê dessa
contingência do mundo. O metafísico assume a contingência das coisas para ir
além das coisas, para procurar o ‘sentido’, ‘o fundamento’ das coisas. A
condição primeira para se fazer metafísica, portanto, é pôr de lado não propriamente
a ciência, mas a atitude típica da ciência, a fim de observar a realidade com
olhos diferentes dos do cientista. Ao metafísico interessa não tanto olhar as
coisas de frente para saber ‘como’ são (tal como faz o cientista), mas olhar ‘atrás’,
‘além’ (‘meta’, em grego) das coisas, a fim de descobrir ‘por que’ são.”
(Battista Mondin,
doutor em Filosofia e Religião, Harvard University; colaboração: Frank
Mangabeira)
“Existem
mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia” (William
Shakespeare). E também mais do que sonha a nossa maravilhosa, mas limitada
ciência. Existe a metafísica!