Na
primeira metade dos anos 80, um amigo meu namorava a filha de um pastor lá da
igreja dele. De vez em quando me convidavam para o almoço dominical, pós-culto.
Eu ficava meio ressabiado, não porque não gostasse da família, simpaticíssima -
é que eles eram mineiros gastronomicamente militantes (apenas do sobrenome
judeu Cohen) e o porco abundava à mesa: no arroz, no feijão, no tutu, na
salada, nos legumes, nas bistecas, até a sobremesa continha gordura suína na
fórmula da gelatina. Não poucas vezes eu tinha que passar à base de pão com ovo
frito (em óleo de soja) e, para arrematar, uma laranja (quando havia
feijoada).
O
chefe da família costumava tirar sarro daquela minha mania “judaizante” de
evitar carne de porco (em verdade, o rol completo é beeeem vasto). Aproveitava
para ministrar seus conceitos teológicos todo-abrangentes. Eu apenas sorria,
discreto, com uma serenidade quentaliana (pesquise o duelo poético português
entre Castilho e Antero de Quental): o novo com fleuma de velho afrontado pelo
velho com pretensões a novo.
Anos
depois, meu colega, já namorando outra guria (aliás, que troca feliz!),
estendeu-me a notícia de que a família de sua ex rogava a todos, independentemente
da denominação religiosa, orações intercessórias pela saúde da irmã do tal
pastor que estava internada em UTI: contraíra a infeliz uma cisticercose
cerebral após ingerir suculentos e deliciosos medalhões suínos (não sei se ia
molho de pera na receita). Na verdade, dada a frequência do consumo de carne de
porco por aquele clã, talvez nem fosse culpa dos medalhões, especificamente;
havia muitos e muitos outros cortes e receitas com o simpático animal no
cardápio libertário dos ex-kohanim (digo, dos Cohen).
Pela
graça divina, a cirurgia correu bem: deslocaram temporariamente um dos olhos da
paciente e inseriram uma cânula pela órbita vazia até atingirem a área do
cérebro com o verme recém-eclodido para, a seguir, congelarem-no com nitrogênio
líquido. Ficou por ali mesmo o parasita cristalizado, era muito arriscado
tentar a remoção. A mulher, não sei se ainda vive ou se apresentou sequelas.
Nunca mais tive notícias.
Bom,
outra hora lhe conto sobre as maravilhas vitalícias de se conviver com uma
triquinose. Ou dos efeitos edificantes da histamina suína - ou mesmo do pig-power carcinogênico-hormonal dos
porquinhos. Mas, vou logo adiantando, é só para quem aprecia emoções (e cenas)
fortes.
(Marco Dourado, formado em Ciência da Computação pela UnB, com especialização em Administração em Banco de Dados)
Correção: A cisticercose cerebral não é causada pela ingestão de carne suína, e sim de ovos de Taenia solium, que mais comumente são ingeridos por verduras mal lavadas ou água contaminada. A ingestão de carne suína mal passada pode transmitir a Teníase, que é parasitismo no intestino e que é diferente de cisticercose.
Correção: A cisticercose cerebral não é causada pela ingestão de carne suína, e sim de ovos de Taenia solium, que mais comumente são ingeridos por verduras mal lavadas ou água contaminada. A ingestão de carne suína mal passada pode transmitir a Teníase, que é parasitismo no intestino e que é diferente de cisticercose.