Como
estamos em temporada papal, achei que seria uma boa ideia fazer um resuminho
básico da relação entre a Santa Sé e a teoria da evolução – de jeito nenhum
exaustivo, mas que pelo menos dá uma ideia geral das tendências históricas até
aqui. E, conversa vai, conversa vem, relativamente pouca gente conhece esses
fatos. Dá pra encontrar um bom relato sobre o tema no livro Pilares do Tempo (editora Rocco), do
saudoso paleontólogo Stephen Jay Gould (1941-2002). Dividindo as coisas por
século:
Século 19 – Não
houve nenhum pronunciamento oficial da alta hierarquia católica quando Darwin
inaugurou a biologia evolutiva moderna ao publicar A Origem das Espécies em 1859. O livro, é bom lembrar, nunca foi
parar no famigerado “Index Librorum Prohibitorum”, o catálogo de livros vetados
ao bom católico (hoje não mais existente).
Nenhum
papa menciona diretamente o darwinismo ou a teoria evolutiva em suas encíclicas,
as grandes cartas pastorais que são, na era moderna, o principal veículo do
magistério (ensinamento) papal. Alguns teólogos mais inovadores que ensaiam
como conciliar o pensamento cristão tradicional com as descobertas de Darwin e
sucessores chegam a ser repreendidos pontualmente pela Igreja.
Século 20 – Os
papas só se põem a mexer realmente no vespeiro a partir de Pio 12 (1876-1958;
pontífice de 1939 até sua morte). Na encíclica “Humani Generis”, de 1950,
vejamos o que Pio 12 diz: “A Igreja não proíbe que... pesquisas e discussões,
por parte de pessoas com experiência em ambos os campos [ciência e teologia],
aconteçam com relação à doutrina da evolução, enquanto ela inquira a respeito
da origem do corpo humano a partir de matéria viva pré-existente.”
De
temperamento conservador, o papa considera, portanto, a questão em aberto e
alvo de discussão legítima, não sem uma pontinha de ceticismo. Na mesma
encíclica, deixa claro o que, pra ele, é inegociável: a ideia de que,
hominídeos à parte, a alma humana (em contraposição ao corpo) é criada
diretamente por Deus; e a doutrina do pecado original: a situação “caída” do
homem – o fato de estarmos afastados da graça de Deus desde o nascimento – só
poderia ser explicada pela culpa original de Adão e Eva. É preciso, portanto,
crer que descendemos do único casal original, e não de vários casais criados
independentemente por Deus, doutrina apelidada de “poligenismo” e considerada
herética.
O
grande “salto para a frente” nas relações diplomáticas entre catolicismo e
darwinismo, porém, foi mesmo o dado por João Paulo 2 (apesar do lado
conservador do véio, é inegável sua abertura para dialogar com tradições
externas à Igreja). O marco é um discurso do papa à Pontifícia Academia de
Ciências, datado de 22 de outubro de 1996: “Em sua encíclica ‘Humani Generis’,
meu predecessor Pio 12 já afirmava que não há conflito entre a evolução e a
doutrina da fé a respeito do homem e de sua vocação, desde que não percamos de
vista alguns pontos fixos [...] Hoje, meio século depois do aparecimento
daquela encíclica, algumas novas descobertas nos levam a reconhecer que a
evolução é mais do que uma hipótese. De fato, é notável que essa teoria tenha
tido uma influência cada vez maior sobre o espírito dos pesquisadores, seguindo
uma série de descobertas em diferentes disciplinas acadêmicas. A convergência
dos resultados desses estudos independentes – que não foi nem planejada nem
ativamente procurada – constitui, em si mesma, um argumento significativo em
favor da teoria.”
Incidentalmente,
vocês viram que o papa polonês distingue direitinho “hipótese” de “teoria”,
certo? (Nada surpreendente para um sujeito com o treinamento filosófico dele,
mas sempre é bom colocar os pingos nos is.) A ressalva, de novo, é a questão da
alma – o único elemento de “criacionismo”, digamos, no pensamento dos papas.
[E, infelizmente, um elemento pagão, não bíblico. Confira.]
Século 21 –
Houve quem interpretasse algumas falas do então cardeal Joseph Ratzinger como
uma possibilidade de aproximação entre a Igreja e o criacionismo, em especial
em sua vertente disfarçada de “design
inteligente” [sic]. Bento 16, porém, demonstra ter uma posição basicamente
igual ao de seu predecessor (e, ao menos na linguagem que utiliza, parece até
conhecer melhor as hipóteses sobre evolução humana, por exemplo). Por exemplo,
veja: “O barro se tornou homem no momento em que um ser, pela primeira vez,
tornou-se capaz de formar, ainda que de forma difusa, a ideia de ‘Deus’. O
primeiro Tu, ainda que gaguejante, dito por lábios humanos a Deus marca o
momento no qual o espírito surgiu no mundo. Aqui, o Rubicão da antropogênese
[origem humana] foi cruzado. Pois não é o uso de armas ou o do fogo, nem novos
métodos de crueldade ou atividade útil, que constituem o homem, mas sua capacidade
de estar em relação imediata com Deus. Isso tem relação direta com a doutrina
da criação especial do homem [...] e aí [...] está a razão pela qual o momento
da antropogênese é impossível de ser determinado pela paleontologia: a
antropogênese é o surgimento do espírito, que não pode ser escavado com uma pá.
A teoria da evolução não invalida a fé, nem a corrobora. Mas, de fato, desafia
a fé a se entender de forma mais profunda e, assim, a ajudar o homem a
compreender a si mesmo e a se tornar cada vez mais o que ele é: o ser que deve
dizer Tu a Deus pela eternidade.”
(Reinaldo José Lopes,
Darwin e Deus)
Nota:
É interessante notar o distanciamento cada vez maior do catolicismo em relação
ao criacionismo bíblico, visão defendida pelos próprios pais da ciência, como
Galileu e Newton, por exemplo. Primeiramente, é bom lembrar que a teologia
liberal católica favorece a ideia de que o relato da criação em Gênesis não
passaria de lenda ou mito, contradizendo abertamente Jesus, Paulo e os demais
autores bíblicos para os quais Adão e Eva eram personagens reais e eram
factuais o relato da criação em seis dias e mesmo a história do dilúvio. Também
não deve surpreender a defesa católica do evolucionismo teísta, uma vez que o
criacionismo bíblico defende a observância do sábado do sétimo dia como
memorial da criação histórica. Para sustentar a pretensa santidade do domingo
(dia utilizado pelos antigos pagãos para adorar o deus Sol e introduzido na
cristandade pelo imperador Constantino), o papado não
poderia mesmo abraçar ou defender a visão criacionista das origens. (Os
evangélicos que pregam o criacionismo, mas guardam o domingo, estão numa
espécie de “vácuo” filosófico-teológico.) Com a eleição do novo papa, não
devemos esperar grandes mudanças na concepção católica de evolução humana.
Podemos, sim, assistir a uma maior polarização entre a defesa do sábado (selo
de autoridade do Criador) e a pregação do domingo como dia sagrado (sinal da
pretensa autoridade humana).[MB]