Um Deus que Se revela |
[A
propósito do início da leitura do livro do profeta Daniel no projeto Reavivados
por Sua Palavra, publico este texto do pastor Luís Gustavo Assis.] Deus
encontra as pessoas onde elas estão. Esse é um princípio conhecido de
evangelismo público. Mas ele não deve ser limitado a isso. Esse é um dos
principais princípios de interpretação bíblica. Ao comunicar Sua mensagem, Deus
não a revelou de uma forma desconhecida para o público. Antes, Ele a revelou de
uma forma que fez sentido para os recipientes da mensagem. Creio que o livro do
profeta Daniel seja capaz de demonstrar a aplicação desse princípio. É evidente
que Daniel tem um significado especial para o adventismo. Nos últimos anos,
diversos novos estudos foram produzidos por nossos teólogos abordando aspectos interessantes
dessa obra.[1] Abaixo, gostaria de compartilhar como o livro de Daniel é capaz
de nos ensinar muito sobre a didática divina e como esse conteúdo pode ajudar em
nosso trabalho missionário.
Daniel 2 – Quem sabe esse seja o capítulo de Daniel mais abordado
em estudos bíblicos, sermões e evangelismos. Gostamos de enfatizar o poder da
profecia bíblica e sua capacidade de revelar o futuro muito tempo antes de ele
acontecer. Mas por que será que Deus utilizou uma imagem para representar a
história da humanidade? Entre os povos do antigo oriente médio, a história da
humanidade costumava ser descrita como uma estátua humana.[2] Se os sábios da
corte real soubessem qual era o sonho, eles não teriam muita dificuldade para
entendê-lo. Eles estavam familiarizados com essa linguagem.
Mas aquela
não era uma simples imagem. Era um ídolo. Se virarmos a página e lermos o
capítulo três, veremos isso mais claramente. Ali está o relato de que o rei
Nabucodonosor construiu uma imagem de ouro – o mesmo metal que representava seu
reino na estátua do capítulo 2 –, e ela deveria ser adorada! Para um rei pagão
como Nabucodonosor Deus revelou o futuro da humanidade na forma de um ídolo, e
este sendo destruído. Deus estava indo ao encontro do rei em sua própria
realidade!
A
visão é concluída com uma rocha destruindo toda a estátua e se tornando uma
grande montanha que encheu a terra. Trata-se do reino de Deus sendo
estabelecido e durando para todo o sempre (2:44, 45). Essa linguagem não era
desconhecida nem para Nabucodonosor, nem para o profeta Daniel. Inúmeros textos
sumerianos, como o Cilindro de Gudea (c. 2500 a.C.), de Lagash, descrevem a
inauguração de um templo como uma pedra se tornando uma montanha e enchendo
toda a terra![3]
O que
seria o reino de Deus, senão a presença de Deus com Seu povo, proporcionando
paz e segurança? E o que seria um templo, senão a habitação de Deus entre Seu
povo? Parte do currículo acadêmico de Babilônia envolvia o estudo da língua e da
literatura sumeriana, tópicos a que Daniel deve ter sido exposto durante seus
três anos de treinamento lá (1:5).[4] Deus moldou Sua mensagem de forma que
Nabucodonosor e Daniel a compreendessem! Para nós que temos um abismo cultural
e linguístico separando nossa realidade da deles, pode ser difícil reconhecer
isso, mas, quando analisamos a cultura da época, esses símbolos fazem muito
mais sentido.
Daniel 7 – A visão de Daniel 7 é basicamente a mesma do capítulo
2. Para tentar amenizar o fato de um rei pagão receber uma revelação divina,
costumamos dizer que Nabucodonosor teve um sonho e Daniel teve uma visão. Na
verdade, ambos foram profetas. O aramaico de Daniel 2:28 e 7:1 é praticamente
idêntico. Tanto o profeta hebreu como o rei babilônico receberam a mesma
revelação divina. No caso de Daniel, um fiel judeu, a visão não foi de um ídolo
composto de vários metais. Ao invés disso, Deus utilizou o esboço da história
da criação. Em Gênesis 1, temos as águas caóticas (v. 2; o ruach, palavra que pode significar tanto “espírito” como “vento”; pairar
do Espírito de Deus), criação dos animais e a criação do homem, e este
recebendo domínio sobre toda a criação. A mesma sequência pode ser vista em
Daniel 7. A visão começa com os quatro ventos do céu agitando o mar (v. 1),
quatro animais surgem na visão (v. 3), e o Filho do homem aparece para ter
domínio sobre esses animais (v. 13 e 14). Esse simbolismo não seria claro para
Nabucodonosor, mas para o profeta hebreu era. Deus foi ao encontro de Daniel
com uma linguagem que era conhecida por ele.[5]
Além
de Gênesis 1, outros elementos parecem ter influenciado a forma como Deus apresentou
a visão no capítulo 7. A linguagem do capítulo é muito parecida com aquela
usada em manuais de interpretação de sonhos e presságios da religião
babilônica, algo que era muito familiar para alguém responsável por todos os
magos, encantadores, caldeus e feiticeiros (Dn 5:11). Expressões como “quatro
ventos do céu” (Dn 7:1) e animais com múltiplas cabeças e chifres são comuns
nesse tipo de literatura.[6]
Outra
influência provável na escolha dos animais da visão pode ser encontrada em Oseias
13:7, 8. Ali Deus afirma que atacaria Israel como um leão, um
leopardo e uma ursa. O que temos em Daniel 7 é justamente isto: poderes
opressores do povo de Deus ao longo dos séculos, isto é, Babilônia,
Medo-Pérsia, Grécia e Roma. Se essa reconstrução estiver correta, Deus
apresentou uma visão que fez perfeito sentido para o profeta, não apenas como
um fiel seguidor e conhecedor das tradições do Antigo Testamento, mas também
como um acadêmico da religião babilônica.
Essa visão deve ter encorajado o profeta. Por anos ele estava vivendo em
Babilônia e até aquele momento Nabucodonosor, um rei pagão, era quem recebia
mensagens divinas (capítulos 2 e 4). Agora Daniel recebe a confirmação de que
um dia o Filho do homem terá todo o domínio em Suas mãos, e esse domínio não
passará para outra pessoa.
Daniel 8 – Alguns estudiosos do livro de Daniel tentaram ver uma
conexão entre o capítulo 8 e calendários astrológicos usados entre os persas e
gregos.[7] Ali, o carneiro simbolizava a Pérsia e o bode, a Síria, território
dominado pelos Selêucidas após a morte de Alexandre, o Grande. Apesar de
atrativa, essa ideia apresenta sérias fragilidades, sendo a principal delas o
fato de estar baseada em fontes tardias (2º século a.C.), o que torna difícil
verificar se alguém vivendo na Babilônia no 6º século a.C. estaria
familiarizado com essa associação.
Se o pano de fundo de Daniel 7 parece ter sido Gênesis 1 e manuais de
interpretações de sonhos e presságios babilônicos, o conteúdo da visão do
capítulo 8 parece ser exclusivamente cúltico.[8] Por cúltico quero dizer que
estava totalmente relacionado com a linguagem do tabernáculo israelita. Por
exemplo, os símbolos do carneiro e do bode nos remetem a Levítico 16, o
capítulo que descreve a cerimônia do Dia da Expiação. O “príncipe do exército”
(v. 11) está relacionado com o homem vestido de linho em Daniel 10:5,
exatamente o tipo de vestes que o sumo sacerdote usava nesse dia (Lv 16:4, 23,
32).[9] O uso do termo pesha’,
traduzido como “transgressão” ou “abominação”, é sugestivo, já que esse tipo de
pecado também era removido do tabernáculo no dia da expiação (cf. Dn 8:12, 13;
Lv 16:16, 21). O uso do verbo “purificar” (heb. nisdaq; v. 14) também parece ter uma conotação cúltica, sendo
utilizado como sinônimo do verbo hebraico tahar,
purificar (cf. Jó 4:17; 17:9),[10] o mesmo utilizado para descrever a atividade
de purificação no Yom Kippur.[11]
Um judeu piedoso como Daniel entenderia todo o simbolismo do capítulo 8.
Depois de revelar que há um futuro promissor (Dn 7), Deus revelou quando Ele
responderia aos diversos ataques dos Seus inimigos, neste caso, do chifre
pequeno (Dn 8:9-14). O conteúdo básico da mensagem divina era compreensível
para o profeta, apesar de uma porção precisar de mais esclarecimentos, no caso
“a visão da tarde e da manhã” (Dn 8:26; 9:23-27). De qualquer forma, ao revelar
Sua mensagem, Deus não o fez de uma forma totalmente aleatória em relação ao
conhecimento e à realidade do profeta.
Conclusão – Especialmente em Daniel 2 e 7, Deus deu a mesma
revelação para pessoas com bagagens culturais e religiosas totalmente
diferentes e creio que essa postura divina tem muito a nos ensinar. Se Ele vai
ao encontro das pessoas onde elas estão, por que não podemos fazer o mesmo? Por
muitas décadas nosso evangelismo pessoal tem sido focado quase que
exclusivamente entre cristãos de outras denominações. Quase que esquecemos por
completo aqueles que não têm um vínculo religioso. Alguns mensageiros são tão
afoitos que já começam um estudo bíblico falando sobre a guarda do sábado, o
que a Bíblia ensina sobre a morte, santuário celestial, e outras doutrinas
distintivas do adventismo. O que nos esquecemos é que em cada pessoa existe uma
história, uma cultura, um estilo de vida. Se não criarmos uma ponte entre nossa
mensagem e a realidade diária do ouvinte, a beleza da mensagem que temos não
será apreciada.
Permita-me ilustrar. Quando fui professor de ensino religioso em Esteio,
RS, aprendi na prática como não dar uma aula. Foi muito simples. Era
simplesmente trazer um conteúdo pronto e despejar em cima dos alunos. Por outro
lado, quando comecei a fazer debates sobre o conteúdo de alguns filmes que
faziam parte da realidade deles e a partir daí levá-los às Escrituras Sagradas,
podia notar o interesse crescente deles. Pegue, por exemplo, um filme como Man of Steel, a mais recente versão da
história do Super-Homem. São inegáveis as
semelhanças do enredo com Apocalipse 12 e a história de Jesus. Por que não
posso usar essa produção de Hollywood como uma introdução ou ponto de contato
para apresentar o evangelho para um jovem? Seria inapropriado? Não à luz do que
vimos em Daniel 2! Essa abordagem pode ser útil para um adolescente ou jovem,
mas não para uma senhora alheia a qualquer filme recém-lançado. Pessoas
diferentes requerem abordagens diferentes. Não podemos imaginar que todos somos
iguais.
Precisamos alcançar as pessoas onde elas estão. Isso envolve
relacionamento, contato pessoal. Quem sabe isso seja difícil para nossa sociedade
atual, já que estamos o tempo todo plugados em redes sociais. Elas podem ter o
seu valor, mas nada substitui o contato pessoal. Quando o Deus do livro de
Daniel Se tornou carne e habitou entre nós (Jo 1:14), Ele nos deixou um
maravilhoso exemplo do que é alcançar as pessoas dentro da sua realidade. Será
que estamos seguindo Seu exemplo?
(Luiz Gustavo Assis é
pastor e faz mestrado nos Estados Unidos)
Referências:
1. Alguns dos recentes estudos feitos por teólogos
adventistas sobre o livro de Daniel: Enrique Baez, Allusions to Genesis 11:1-9 in the Book of Daniel: An Exegetical and
Intertextual Study (PhD. diss., Andrews University, 2013); Patrick Mazani, The Book of Daniel in Light of the Ancient
Near Eastern Literary and Material finds: An Archaeological Perspective
(PhD. diss., Andrews University, 2008); Winfried Vogel, The Cultic Motif in the Book of Daniel (New York, NY: Peter Lang,
2010); Martin Pröbstle, Truth and Terror:
A Text-Oriented Analysis of Daniel 8:9-14 (PhD. diss., Andrews University,
2005); Lewis Anderson, The Michael Figure
in the Book of Daniel (PhD. diss., Andrews University, 1997); Zdravko
Stefanovic, Correlations Between Old Aramaic
Inscriptions and the Aramaic Section of Daniel (PhD. diss., Andrews
University, 1987); idem., Daniel, Wisdom
for the Wise: Commentary on the Book of Daniel (Pacific Press, 2007).
2. Para uma introdução sobre o processo de
interpretação de sonhos no Antigo Oriente Médio, ver A. Leo Oppenheim, The Interpretation of Dreams in the Ancient
Near East (Gorgias Press, 2009).
3. Greg K. Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the
Dwelling Place of God (Downers Grove, IL: IVP Academic, 2004), p. 51.
4. Jacques Doukhan, Secrets of Daniel: Wisdom and Dreams of a Jewish Prince in Exile
(Hagerstown, MD: Review and Herald, 2000), 17.
5. Devo a Jon Paulien a ideia da relação entre
Gênesis 1 e Daniel 7. Ele os apresentou em uma palestra aos pastores da
Associação Central Sul-Riograndense, em agosto de 2011. Para mais detalhes
sobre a história da criação no livro de Daniel, ver: Martin G. Klingbeil, “Creation
in the Prophetic Litetature of the Old Testament”, Journal of the Adventist Theological Society 20/1-2 (2009), p. 47, 48;
Jacques B. Doukhan, “Allusions à la creation dans le livre de Daniel”, em Adam
S. vam der Wounde, The Book of Daniel in
Light of New Findings (Biblioteca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium
106, Leuven: University Press and Peeters, 1993).
6. Ernest Lucas, “The Source of Daniel’s Animals
Imagery”. Tyndale Bulletin 41.2
(1990), p. 161-185.
7. Aage Bentzen, Daniel:
Handbuch zum Alten Testament 19 (Tübingen: J. C. B. Mohr, 1952), p. 69; Andre
Lacocque, The Book of Daniel
(Atlanta: John Knox Press, 1979); Norman W. Porteus, Daniel (Philadelphia, PN: The Westminster Press, 1965), p. 122;
John Goldingay, Daniel, in World Biblical
Commentary (Dallas, TX: Word Books, 1989), p. 208, 209.
8. Para uma introdução à linguagem cúltica do livro
de Daniel, ver a já citada obra de Winfried Vogel, The Cultif Motif in the Book of Daniel, uma das mais recentes obras
sobre esse aspecto do livro de Daniel.
9. Para mais argumentos sobre a identificação de
Miguel como o “homem vestido de linho” em Daniel 10 e 12, ver a já citada
dissertação de Lewis Anderson, The
Michael Figure in the Book of Daniel, p. 296-317.
10. Richard Davidson, “The Meaning of Nisdaq”, Journal of the Adventist Theological Society
7/1 (1996), 107–119.
11. Existem outros indicativos para um pano de fundo
do Dia da Expiação em Daniel 8. Estes foram listados apenas a título de
ilustração. Ver Luiz Gustavo Assis, “The Background of the Imagery of Daniel 8:
Cultic or Pagan?”, artigo não publicado.